sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O colapso da União Soviética reconsiderado


Trabalho apresentado ao Segundo Congresso Internacional, "Marx em Maio"

Roger Keeran e Thomas Kenny


Símbolo clássico da URSS
Em 2004, Thomas Kenny e eu escrevemos o livro O Socialismo Traído: Por trás do colapso da União Soviética. Desde esse ano, o livro foi publicado e resenhado na Bulgária, Rússia, Irã, Turquia, Grécia, Portugal, França, Cuba e Espanha. Juntos ou separadamente, os autores participaram em debates sobre o livro na Grécia, Portugal, França e Cuba, e foram publicadas várias críticas em jornais de esquerda. Nesta exposição, Kenny e eu queremos responder a dois tipos de críticas e a uma questão suscitadas pelo livro. Nele desenvolvemos uma explicação do colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Usamos as palavras "colapso" e "traído" no título, apesar das possíveis conotações equívocas de ambas as palavras.

No entanto não se levantaram dúvidas sobre o que tentamos explicar, ou seja, a transformação radical que arredou do poder político o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), aboliu a maioria da propriedade estatal, o planejamento centralizado e o sistema de serviços sociais, e fragmentou o Estado multinacional. Argumentamos que a União Soviética não colapsou porque o socialismo fracassou. Ao invés, o sistema socialista baseado na propriedade coletiva ou estatal e no planejamento central teve um assinalável êxito, em particular do ponto de vista do povo trabalhador. O sistema provou ser capaz de assegurar um crescimento econômico sustentado durante seis décadas, produziu notáveis inovações técnicas e científicas e proporcionou benefícios econômicos e sociais sem precedentes a todos os cidadãos. Ao mesmo tempo defendeu-se permanentemente da invasão externa, da sabotagem e ameaças, e prestou ajuda econômica, auxílio técnico e proteção militar a outras nações em luta pela independência e o socialismo.

A União Soviética, no entanto, teve problemas - alguns relacionados com a ossificação política e ideológica, outros ligados à quantidade e qualidade da produção da economia, outros ainda derivados da confrontação com o imperialismo. No entanto, não foram estes problemas que causaram o colapso do sistema. O que derrubou o socialismo soviético foram as políticas prosseguidas por Mikhail Gorbatchov. Essas políticas baseadas na crença de que os problemas do socialismo poderiam ser resolvidos através de concessões unilaterais ao imperialismo e da incorporação no socialismo de certas ideias e políticas do capitalismo. Estas ideias tinham raízes no discurso político soviético, mas nunca haviam triunfado de forma tão completa como com Gorbatchov.

O que permitiu que essas ideias ganhassem ascendência foi o fato de nas três décadas anteriores se ter desenvolvido dentro da União Soviética um setor pequeno-burguês, que se enraizou sobretudo na economia privada ilegal. Esta chamada "segunda economia", causou danos à primeira economia, desmoralizou uma parte da população, corrompeu segmentos do partido comunista e do governo, e forneceu uma base social para as políticas prosseguidas por Gorbatchov. Em vez de sarar os problemas do socialismo, as políticas de Gorbatchov provocaram num curto prazo o caos completo na economia e acabaram por derrubar o socialismo.


 Crítica número 1.


             Algumas críticas alegam que a nossa explicação ignora a causa profunda do colapso, isto é, que a tentativa de construir o socialismo na União Soviética estava condenada desde o início, devido ao insuficiente desenvolvimento das forças produtivas.

             Não é uma tese nova. Em 1918, Karl Kautski afirmou que a Rússia não estava preparada para o socialismo. A ideia provém de Karl Marx e Friedrich Engels, que acreditavam que só o desenvolvimento completo das forças produtivas no capitalismo criaria as pré-condições para a abolição das classes, e baseia-se numa descrição do atraso da Rússia feita por Engels em 1875. De acordo com este ponto de vista, a União Soviética só poderia avançar para o socialismo permitindo primeiro o florescimento da iniciativa privada e o desenvolvimento das forças produtivas através de empresas mistas com capitais estrangeiros. Ambas as coisas teriam acontecido se a União Soviética tivesse continuado a chamada Nova Política Econômica (NEP), introduzida por Lênin em 1921. O corolário desta tese é a alegação de que a União Soviética só poderia ter evitado o colapso se enveredasse pelo caminho atual da China ou do Vietnam, o caminho da "economia de mercado com orientação socialista".

Esta explicação levanta problemas maiores. Não é nada claro que o pensamento de Marx e Engels fosse, neste caso, a linha adequada a seguir pelos comunistas soviéticos nos anos 20. Mesmo que as condições soviéticas pudessem não ser as ideais para construir o socialismo, Marx tinha bem a consciência de que, como disse em 1853, "os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias da sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado".

Além disso, em 1917, a Rússia não era um país tão atrasado como o descreveu Engels em 1875. Possuía algumas das maiores fábricas do mundo, e dez por cento da sua população trabalhava na indústria. Reconhecidamente, a nova União Soviética continuava a ser essencialmente um país rural. Os líderes soviéticos, como Viatcheslav Mólotov, reconheceram mais tarde que o atraso "afetou negativamente o socialismo". Não obstante, aqueles que pensam que o atraso não só afetou negativamente o socialismo como o condenou, defrontam-se com três objeções. A primeira é a de que, por muito atrasada que estivesse no início dos anos 20, a União Soviética não se manteve nessa situação. Tendo como vantagens recursos naturais ricos, uma liderança talentosa e uma população motivada, a União Soviética tornou-se na segunda potência econômica, apenas superada pelos EUA. Em 1984, o economista Harry Shaffer escreveu: "Os Estados Unidos continuam à frente da União Soviética em termos de produção bruta e per capita, de consumo e nível de vida. Mas a União Soviética tem vindo a aproximar-se gradualmente dos Estados
Unidos."

Assim, mesmo que no início as forças produtivas estivessem num estado de atraso, tal não era certamente a situação em 1985. Apesar de o desenvolvimento industrial da União Soviética ser indiscutível, alguns acreditam, todavia, que o atraso original enfraqueceu fatalmente o sistema. Erwin Marquit afirma que o atraso original levou os soviéticos a recorrerem ao "modelo utópico da economia planejada", e que essa economia planejada "provou ser incapaz de acertar o passo com desenvolvimento tecnológico orientado pelo mercado no Ocidente". Isto não é convincente. Com efeito é precisamente o oposto que é verdadeiro. Foi através da propriedade estatal e do planejamento que a economia soviética fez progressos notáveis, não só economicamente mas também tecnologicamente. Nos anos 80, o desenvolvimento tecnológico soviético não igualava o dos EUA, mas não estava longe, e aproximava-se gradualmente. Num livro sobre ciência e tecnologia socialista, publicado em 1989, John W. Kiser III afirmou que a ideia do "fosso tecnológico" era um exagero criado pela "crença norte-americana na inferioridade inerente ao sistema soviético". Devido ao fato de a União Soviética não incentivar a comercialização das suas realizações tecnológicas, o Ocidente manteve "uma tendência persistente para as subestimar". Kiser assinala, entre outros, os avanços tecnológicos nos setores da metalurgia, química, indústria alimentar, biomedicina, alcançados pelos soviéticos e países socialistas do Leste europeu.

Quanto à tecnologia informática, em 1986, a CIA concluiu que existia um fosso entre a União Soviética e o Ocidente em matéria de software e hardware, mas ressalvava que "os soviéticos continuarão a fazer rápidos progressos em termos absolutos", e em dez ou 15 anos "as instituições científicas de topo terão provavelmente equipamentos comparáveis aos melhores que hoje dispõem os laboratórios nacionais dos EUA". Por outras palavras, o fosso tecnológico era pequeno e diminuía. Assim, o atraso tecnológico dificilmente pode explicar de forma convincente o colapso. Um segundo problema da explicação baseada no atraso tecnológico é a presunção de que a Nova Política Econômica (NEP), isto é, a promoção do desenvolvimento através da iniciativa privada e do investimento externo, seria uma opção real. É como afirmar que a Guerra Civil norte-americana poderia ter sido evitada se o Norte permitisse que a escravatura desaparecesse de modo natural. Apesar de esta ideia poder ser apelativa para aqueles que culpam os abolicionistas pela carnificina da Guerra Civil, poucos historiadores (caso haja algum) pensarão que tal era uma opção real em 1860. De igual modo, continuar com a NEP não era uma opção real para os soviéticos nos anos 20. Em 1921, os soviéticos viraram-se para a NEP para resolver problemas criados pelas políticas do «comunismo de guerra», em particular o desinteresse dos camponeses, provocado pelo confisco dos cereais. No entanto, em pouco tempo, a NEP gerou os seus próprios problemas.

Explicando porque é que os soviéticos abandonaram a NEP, o historiador E.H. Carr apontou três graves problemas. O primeiro é a ocorrência da chamada "crise das tesouras" em 1922-23, na qual a forte queda dos preços do trigo provocou penúria de alimentos, desemprego e sofrimento para os camponeses pobres e médios. O segundo foi a constatação por parte da maioria dos líderes soviéticos de que a NEP condenava a União Soviética a um longo período de atraso industrial, perspectiva aterradora e intolerável face à ameaça crescente de inimigos externos. O terceiro foi o açambarcamento da produção pelos camponeses, devido à queda dos preços agrícolas, provocando fome nas cidades. Por estas razões, a dependência do mercado e da iniciativa privada tornou-se insustentável.

Assim, foram problemas econômicos reais, bem como opções ideológicas, que levaram os líderes soviéticos a adotar novas políticas e aderir à propriedade estatal e à planificação centralizada. Nestas circunstâncias, chamar "utópica" à passagem para a propriedade estatal e planificação central é absurdo. Esta transição permitiu que a União Soviética se industrializasse num curto espaço de tempo, derrotasse a invasão nazista e reconstruísse rapidamente o país depois da guerra.

Além disso conseguiu ao mesmo tempo aumentar progressivamente o nível de vida dos trabalhadores soviéticos. Imaginar que a URSS poderia alcançar tais resultados, prosseguindo as problemáticas políticas da NEP, é simplesmente tomar os desejos por realidade. A explicação do colapso da URSS pelo atraso comporta um terceiro ponto fraco, que se revela quando examinamos as lições que se podem tirar desta explicação. É inteiramente apropriado avaliar a explicação através das lições que dela decorrem. Por exemplo, se um pastor morre ao cair de um penhasco na montanha, só um louco concluiria que se deve evitar o pastoreio e as montanhas. No entanto, se no momento do acidente, o pastor estivesse bêbado, uma pessoa razoável diria que se deve evitar beber quando se guardam ovelhas em encostas montanhosas. Alguns dos que subscrevem a tese do colapso da URSS devido ao atraso, concluem que a URSS deveria ter evitado a planificação central e seguido o caminho da China atual. Mas esta conclusão é tão sensata como evitar o pastoreio e as encostas montanhosas. No mínimo é irrefletida. Nem mesmo os próprios chineses tiram esta conclusão do colapso da União Soviética. Segundo afirma Arthur Waldron, "hoje, oficialmente, a China considera que nada de profundo ou fundamental estava errado na União Soviética, mesmo na segunda metade dos anos 80. De acordo com o discurso oficial, a falência da União Soviética continua a não ser atribuível a um amplo fenômeno sistêmico mas, pelo contrário, à falência muito específica do Partido Comunista da União Soviética."

Além disso, saber para onde conduziria em última instância a via chinesa e o que tal significaria para a classe operária, são questões que permanecem em aberto. A curto prazo, a via chinesa produziu crescimento econômico e aumentou os rendimentos da população urbana. No entanto, desde 2008, o declínio das taxas de crescimento econômico e as dificuldades causadas à economia chinesa pela estagnação do mercado mundial levantam dúvidas sobre a viabilidade futura deste modelo. Segundo o The New York Times, em março deste ano, o crescimento da China "desacelerou para o nível mais baixo em mais de uma década".

Em simultâneo, a classe operária chinesa está a pagar um preço elevado por uma via que se afasta progressivamente dos objetivos do socialismo. Durante a última década o desemprego não oficial nas cidades esteve sempre acima dos oito por cento. A parte do capital e investimento estrangeiros no total das vendas da China passou de 2,3 por cento em 1990 para 31,3 por cento em 2000. Como o investimento direto na China (124 bilhões de dólares em 2011) tem vindo a crescer anualmente, e apenas é superado pelo investimento estrangeiro nos Estados Unidos, a percentagem do capital estrangeiro é hoje inquestionavelmente maior do que em 2000. De resto, como constata um estudo recente, entre "os resultados inevitáveis do desenvolvimento capitalista da China", assinala-se o "aumento do desemprego, da desigualdade e da insegurança; cortes nos cuidados de saúde e educação pública; agravamento da opressão das mulheres; marginalização da agricultura; multiplicação das crises ambientais". Na medida em que a economia de mercado com orientação socialista é questionável enquanto via para o socialismo, também é questionável a conclusão que se retirou do colapso da URSS.

Em suma, a tese do atraso deve ser rejeitada por três razões. Primeiro, porque as forças produtivas da União Soviética não estavam subdesenvolvidas em 1985, por maior que fosse o seu atraso em 1917. Segundo, porque esta tese implica que a União Soviética deveria e poderia ter continuado a NEP. Esta ideia era insustentável à época e completamente fantasiosa em retrospectiva. Terceiro, se o caminho chinês ao socialismo é mais confiável do que o soviético ainda está por ser visto.

Crítica nº 2


            Um segundo tipo de críticas ao nosso livro surge a propósito da abordagem a Josef Stálin. Para alguns críticos, o fato de não se ter denunciado Stálin como um paranoico, um criminoso, um anti-semita, um demônio, um ditador e um assassino de massas, constitui uma falha fatal. Alguns críticos só ficaram satisfeitos se subscrevêssemos o que Domenico Losurdo chama de "uma lenda negra". Para eles, o fato de não termos condenado a crueldade de Stálin constitui uma omissão imperdoável. A estes gostaríamos de responder como Lenin respondeu a Maxim Gorky, quando este manifestou preocupação sobre "a crueldade das táticas revolucionárias". Lenin respondeu: "Que quer você? (...) Será possível agir humanamente num combate com tal ferocidade sem precedentes? Haverá aqui lugar à brandura e à generosidade? Estamos sob bloqueio da Europa, privados da esperada ajuda do proletariado europeu, vemos por todos os lados a contra-revolução rastejar contra nós como um urso. Que devemos fazer? Não devemos, não temos o direito de lutar e resistir? Desculpe, mas não somos tolos. (...) Com que critério avalia a quantidade de golpes necessários e excessivos no combate?"

A verdade é que não fazemos uma avaliação global de Stálin, porque consideramos que era um assunto demasiado importante para ser tratado de forma superficial num estudo dedicado a um tema diferente. Como qualquer historiador, levantamos uma questão específica – neste caso, as causas do colapso da União Soviética – e limitamo-nos a tentar responder a esta questão. Tratamos as ideias de Stálin e as suas políticas apenas na medida em que se relacionavam com a nossa exposição.

Mas porquanto a crítica à nossa abordagem de Stálin está ligada à nossa explicação do colapso, merece uma resposta. Aqui temos de fazer uma distinção. Como é sabido, existe uma corrente de pensamento, que remonta aos anos 20 e se estende até ao presente, segundo a qual a União Soviética entrou em declínio inexorável desde que rejeitou as ideias de Leon Trótski, sobre a necessidade de prosseguir a revolução permanente ao nível mundial e a inutilidade de construir o socialismo num só país. Deste ponto de vista, a União Soviética não construiu o socialismo, e o seu colapso representou apenas uma nota de rodapé ao exílio de Trótski. Só aqueles que aceitam estas premissas sobre a importância de Trótski e a ausência de socialismo na União Soviética podem ficar satisfeitos com a explicação trotskista da história soviética.

Todavia há outras visões sobre Stálin e o seu papel no colapso da União Soviética. Uma dessas visões sustenta que o colapso da URSS resultou das "deformações stalinistas", uma espécie de efeito retardado das políticas de Stálin. Esta tese reconhece que a União Soviética construiu o socialismo, baseado na propriedade pública e na planificação, que funcionou bem proporcionando crescimento econômico, defesa militar, emprego, segurança econômica, cuidados de saúde, educação e um nível cultural elevado para os trabalhadores. Não obstante, a luta contra o seu próprio atraso e contra as ameaças internas e externas, bem como outros desafios, conduziram a deformações antidemocráticas. Estas deformações manifestaram-se no «culto da personalidade, na sujeição autoritária de toda a atividade social à disciplina e controle do PCUS, e na subordinação de todo o pensamento e práticas científicas e culturais à ideologia política".

De acordo com esta visão, a economia planificada não constituiu um problema. O problema residia antes no legado do autoritarismo stalinista. O autoritarismo de Stálin teria minado as tentativas de descentralizar o controle e a responsabilidade, coartado a iniciativa e impedido a realização do potencial da economia socialista. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com a historiografia ocidental dificilmente estranhará que alguns autores culpem Stálin pelo colapso da União Soviética, uma vez que toda uma série de outros lhe atribuem a responsabilidade por praticamente todas as calamidades do século XX.

Uma figura tão complexa como Stálin, líder de um vasto país que atravessou numerosas crises durante um prolongado espaço de tempo, estava destinada a deixar um legado complicado. Assim, pode-se facilmente admitir a existência dos problemas referidos por aqueles que sustentam a teoria das deformações de Stálin. Por exemplo, na economia planificada, onde a natureza e a dimensão da produção são definidas a partir de cima, existe o problema endêmico da asfixia da iniciativa e da responsabilidade em baixo. A União Soviética debateu-se com este problema durante anos, e Cuba debate-se hoje com ele. Este problema não resulta apenas de Stálin. Por seu turno, sem lhe chamarmos "deformações stalinistas", reconhecemos que a dimensão e os métodos da repressão "deixaram inquestionavelmente uma herança de ressentimento, timidez, servilismo, remorso, e sabe-se lá que mais".

No entanto a história não acaba aqui. Ao avaliar-se o legado de Stálin deve-se distinguir as apreciações morais e políticas – ou seja, se determinadas atitudes e políticas foram boas ou más, justificadas ou injustificadas, positivas ou negativas – das apreciações históricas sobre os seus efeitos e consequências. Ambas são legítimas, mas a questão que temos perante nós é matéria de apreciação histórica. Ou seja: podem efetivamente as políticas de Stálin ser relacionadas com o colapso da URSS? Honestamente, aqueles que defendem a tese das deformações de Stálin pouco fizeram para levar a discussão do campo moral para o da explicação histórica. Stálin deixou uma herança contraditória no que respeita ao autoritarismo e democracia. Aqueles que subscrevem a tese das deformações de Stálin apenas vêem um lado, afirmando que Stálin minou a democracia socialista, desmoralizou e desmobilizou o povo soviético, e que isso, em última instância, socavou a eficiência e a produtividade do sistema socialista, conduzindo-o, a partir daí, ao colapso. Mas onde está a prova desta desmoralização e desmobilização? As grandiosas realizações do povo soviético, entre os anos 30 e os anos 50, a coletivização da agricultura, a rápida industrialização, o aumento do nível educacional e cultural do povo, a derrota da invasão de Hitler, a reconstrução do país em quatro anos, depois da devastação da guerra, dificilmente traduzem o trabalho de uma população desmoralizada e desmobilizada. Bem pelo contrário. Estas realizações exigem uma participação popular ativa. Aliás, um olhar sóbrio sobre o legado de Stálin tem de reconhecer que existem nele elementos de democracia e de participação popular, bem como de autocracia e repressão. A Constituição Soviética de 1936 simboliza esta herança ambígua.

Por um lado, apesar das promessas democráticas da Constituição, a União Soviética permaneceu um Estado em que o poder se concentrava no partido comunista e, de uma forma crescente, no seu líder, onde as nomeações para cargos oficiais e outras se faziam a partir de cima, e onde outras instituições, incluindo os sovietes e os sindicatos, tinham, no melhor dos casos, uma função consultiva. Por outro lado, a Constituição representou uma tentativa, pela primeira vez na história, sob condições favoráveis, de dar um significado à ideia da democracia socialista. A Constituição foi o resultado de dois anos discussão, em que largos segmentos dos trabalhadores, camponeses e outras camadas foram envolvidos num amplo debate nacional do projeto de documento, que foi seguido de um referendo nacional.

A Constituição alargou os direitos democráticos dos cidadãos soviéticos, levantando as restrições eleitorais aos indivíduos associados ao regime tsarista e, ao mesmo tempo que consagrou o papel exclusivo do partido comunista, também introduziu as candidaturas múltiplas, o sufrágio secreto e as eleições diretas. Partindo das constituições burguesas com uma perspectiva revolucionária, a Constituição soviética instituiu direitos econômicos, onde se incluíram: o direito ao emprego, férias pagas anuais, assistência médica gratuita, ensino gratuito até ao sétimo ano inclusive, assistência estatal às mulheres com muitos filhos e mães solteiras, licença de maternidade totalmente paga e acesso às maternidades, enfermarias e jardins-de-infância.[1]

A Constituição de 1936 refletiu ainda um outro legado democrático, designadamente a política soviética para as minorias nacionais. O historiador Terry Martin caracterizou a União Soviética como "o primeiro império do mundo com ação afirmativa". O que Martin quis dizer com isto foi que a União Soviética «criou não só dezena e meia de grandes repúblicas nacionais, mas também dezenas de milhares de territórios nacionais espalhados por toda a vastidão do país. Novas elites nacionais foram instruídas e promovidas para cargos de liderança no governo, escolas e empresas industriais desses novos territórios. Em cada território, a língua nacional adquiriu estatuto de língua oficial do governo. Em dezenas de casos isso implicou a criação de uma língua escrita, que não existia. O Estado soviético financiou a produção em massa de livros, revistas, jornais, filmes, óperas, museus, música tradicional e outras produções culturais em línguas não russas. Nada de comparável tinha sido tentado anteriormente (...) e nenhum Estado multiétnico igualou ulteriormente a escala da Ação Afirmativa Soviética."[2] Segundo um estudo de opinião, realizado em 1950-51 pelo Harvard Interview Project, que abrangeu centenas de cidadãos soviéticos, "a maioria esmagadora" dos inquiridos sobre a Constituição de 1936 concordou que as garantias estabelecidas sobre a igualdade das nacionalidades correspondiam de fato à realidade.[3]

A ambiguidade do legado autocrático e democrático de Stálin até se manifesta nas repressões dos anos 30. A campanha contra os trotskistas e sabotadores em 1937, que conduziu milhões à prisão e milhares à morte, correspondeu a um movimento de massas lançado nos sindicatos e nos locais de trabalho pelo alargamento da democracia. O líder dos sindicatos, Nikolai M. Chvérnik, lançou este movimento no sentido de aplicar nos sindicatos os direitos consagrados na Constituição de 1936, ou seja, eleições secretas com múltiplos candidatos, um maior envolvimento das bases e uma maior prestação de contas por parte das direções sindicais. Este movimento estava de mãos dadas com a campanha contra o culto dos líderes, pela erradicação dos dirigentes corruptos, dos oposicionistas dissimulados e outros "inimigos do povo", que desviavam fundos dos sindicatos, violavam as normas de segurança, sabotavam habitações, serviços sociais e a produção. Como resultado deste levantamento a partir de baixo, no final de 1937, "mais de um milhão e 230 mil pessoas foram eleitas em 146 sindicatos e em centenas de milhares de organizações sindicais e comités de empresa (...) O resultado final das eleições traduziu-se numa mudança radical de quadros. Mais de 70 por cento dos antigos comités de fábrica, 66 por cento dos 94 mil presidentes de comités de fábrica e 92 por cento dos 30.723 membros dos comitês plenários regionais foram substituídos".[4] O que aconteceu nos sindicatos e locais de trabalho em 1937 foi literalmente um movimento democrático a partir de baixo para afastar e punir determinados líderes sindicais. O historiador Wendy Goldman chamou-lhe uma "repressão democrática", e notou que esta "repressão não constituiu um ato contra o povo soviético realizado por uma 'entidade' maléfica, mas foi ativamente apoiada e difundida pelo próprio povo em todas as instituições".[5]

Em suma, se olharmos objetivamente para o legado de Stálin, não vemos ligações diretas entre Stálin, o autoritarismo, a desmobilização popular e o colapso da URSS. Tanto no enunciado da Constituição de 1936 como na política das nacionalidades e no movimento de democratização dos sindicatos de 1937, pelo menos, ao contrário de desmobilizar, Stálin mobilizou as massas. Aliás, se as políticas de Stálin tivessem tido o efeito de desmobilizar e desmoralizar o povo soviético, dificilmente a sua morte seria motivo de tão grande consternação, nem se esperaria que passados 50 anos a sua personalidade continuasse a ser venerada. No entanto, é precisamente isso que as sondagens mostram.[6]
Em suma, pode admitir-se com facilidade que o legado democrático de Stálin é ambíguo. No entanto, só uma visão muito unilateral e distorcida de Stálin poderá concluir que as "deformações" de Stálin desmobilizaram politicamente as massas trabalhadoras a tal ponto que foram a causa principal do colapso da URSS.


Uma terceira reação


             A terceira reação ao nosso livro não é propriamente uma crítica, mas antes uma pergunta, colocada nos seguintes termos: por que razão o partido comunista e a classe operária soviética não se opuseram às políticas de Gorbatchov, sublevando-se em defesa do socialismo? No livro abordamos esta questão (pp. 267-273). É certo que o fato de a resistência das bases não ter sido grande, nem maior o seu êxito, constitui o aspecto mais perturbador em todo o processo da dissolução da União Soviética. Mas por muito perturbador que seja, este fato em si e por si não permite saltar para a conclusão de que havia alguma coisa errada no socialismo soviético ou que o socialismo soviético frustrou as expectativas dos trabalhadores de uma forma fundamental.

Gorbatchov pretendia que se podia resolver os problemas do socialismo fazendo concessões aos imperialistas e incorporando ideias do capitalismo no socialismo. Parte disto passava pela introdução de aspectos da democracia burguesa, ao mesmo tempo que as instituições tradicionais da democracia socialista eram minadas e marginalizadas. Para se compreender a ineficácia da resistência da classe operária não precisamos de ir muito além disto. Os comunistas e trabalhadores soviéticos viram-se privados das vias tradicionais de expressão, ao mesmo tempo que o seu líder formal introduzia gradualmente ideias capitalistas, embrulhadas na noção de aperfeiçoamento do socialismo. Na nossa opinião, as coisas não tinham de se passar desta forma. Reformas diferentes e um processo diferente de reformas, que mobilizassem o partido comunista e a classe operária, poderiam produzir resultados diferentes. Isto havia sido tentado por Iúri Andrópov, mas o esforço foi de curta duração, devido à sua doença e morte.

Duas recentes visitas a Cuba e um estudo sobre as presentes reformas em curso, chamadas «atualização», reforçaram a nossa conclusão sobre o destino do socialismo soviético. Obviamente que a União Soviética e Cuba são dois países completamente diferentes, com histórias e situações muito diferentes. Uma diferença significativa foi o embargo econômico e comercial imposto pelos EUA a Cuba. Apesar de a União Soviética também ter passado por um bloqueio econômico durante duas décadas, o embargo a Cuba dura há mais tempo e o seu custo é relativamente mais elevado. Hoje, passados 50 anos, segundo estimativas moderadas, o embargo custou aos cubanos mais de 104 bilhões de dólares a preços correntes, e se considerarmos a desvalorização do dólar em relação ao ouro, esse valor sobe para 975 bilhões de dólares.[7] Sem o boicote, hoje, o nível de vida em Cuba poderia ser semelhante ao da Europa Ocidental.[8]

Não obstante as diferenças óbvias, Cuba e a União Soviética têm algumas características comuns. Ambas as economias se baseiam na propriedade pública e na planificação centralizada, dirigidas pelo partido comunista, e tanto a sociedade soviética em 1985 como a cubana em 2011 enfrentavam problemas similares, embora em graus diferentes. Por exemplo, ambas tinham duas moedas, uma convertível em divisas internacionais e outra interna. A divisa soviética, interdita à maioria dos cidadãos, estava limitada aos turistas, diplomatas e alguns outros representantes, e era usada apenas nas lojas em divisas. Em Cuba, no entanto, a moeda convertível não é ilegal, e muitos cubanos auferem legalmente rendimentos em pesos convertíveis, por trabalharem na indústria do turismo, sob a forma de prêmios em certas outras entidades, ou ainda provenientes de remessas de familiares emigrantes.

A existência de duas moedas gera mais problemas em Cuba do que no caso da União Soviética. A grande disparidade entre o valor do peso (CUP) e do peso convertível (CUC), na ordem de 25 para 1, criou uma série de problemas, incluindo uma crescente desigualdade entre aqueles que têm acesso à moeda convertível e os que não têm, e uma fuga de cérebros de profissões sem salários em divisas para aquelas que permitem esse acesso, como é o caso do turismo. Conduzir um táxi pode proporcionar gorjetas em divisas de valor superior aos rendimentos de um professor. Isto é claramente desmoralizador e ineficiente. Um outro exemplo de um fenômeno presente nas duas sociedades é a segunda economia, ou mercado negro. Na União Soviética a segunda economia constituía um problema maior do que em Cuba. Na União Soviética a segunda economia existiu durante um período mais longo, estava mais espalhada e desenvolvida, e ligada com frequência a minorias nacionais e à "máfia" organizada.[9]

Em certos aspectos, os problemas de Cuba e da União Soviética [nos anos 80] são semelhantes: deficiências na produtividade e eficiência, qualidade insuficiente dos bens de consumo, falta de iniciativa e de sentido de propriedade e responsabilidade no local de trabalho, difusão insuficiente das tecnologias computacionais, etc. Além disso pode-se encontrar facilmente semelhanças entre as soluções propostas por Iúri Andrópov, em 1983 (e mesmo entre as políticas iniciais de Gorbatchov), e o programa cubano de reformas de "atualização", proposto em 2011. Por exemplo, nos dois casos as reformas visavam aumentar a eficiência, a produtividade, a motivação e a qualidade através da recompensa do esforço, da descentralização do controle e da responsabilidade, do desenvolvimento de empresas mistas com capitais estrangeiros, de incentivos às cooperativas e da concessão de maior latitude à iniciativa privada.

Mas os processos na União Soviética e em Cuba diferem de forma flagrante. Em Cuba o processo de reformas envolveu os comunistas de base e os trabalhadores de uma forma muito mais ampla do que na União Soviética. Em Cuba, entre o desenvolvimento das orientações da reforma em 2010 até à sua implementação em 2014, houve todo um processo que implicou o envolvimento das massas e a construção de um consenso de massas.

O processo começou entre dezembro de 2010 e fevereiro de 2011, com debates com o povo em geral, seguiram-se debates no partido em todas as províncias, e por fim debates no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC) em abril. No total realizaram-se 163.079 reuniões, em que estiveram 8.913.828 participantes. Destes debates resultou um importante conjunto de alterações: "O documento original continha 291 linhas de orientação, das quais 16 foram incorporadas noutras, 94 mantiveram a sua redação, o conteúdo de 181 delas foi modificado e foram incorporadas 36 novas linhas de orientação, para um total de 311 no atual projeto. (...) Aproximadamente mais de dois terços das linhas de orientação, exatamente 68 por cento, foram reformulados." [10] O debate das linhas de orientação decorreu ainda através de cartas publicadas no jornal Granma, em programas de rádio, em blogs na Internet e nos sindicatos.[11] Um observador anotou: "O elemento-chave aqui é que o projeto da nova lei laboral implica um processo de consulta com a Central dos Trabalhadores de Cuba (CTC) tão detalhado e extensivo que os sindicatos têm de fato o poder de veto".[12]

Na União Soviética, Iúri Andrópov iniciou as reformas econômicas com debates nos locais de trabalho. Todavia, para Gorbatchov, os debates com as bases sobre as mudanças foram sobretudo uma oportunidade para promover a sua imagem pública. Os amplos debates, o estímulo à crítica e a construção de consensos estiveram praticamente ausentes no processo de reformas de Gorbatchov. Se tivesse sido de outro modo, será que hoje nos interrogaríamos sobre onde estavam os comunistas soviéticos e os trabalhadores?

Mas se os dois tipos de críticas ("o atraso soviético" e "as deformações de Stálin") não são convincentes, por que razão continuam a ser tão populares? Na nossa opinião a razão da popularidade destas explicações é que elas decorrem e dependem da omnipresente ideologia do anti-stalinismo e do anticomunismo. O anticomunismo e o anti-stalinismo não são meras discordâncias com o sistema socialista ou com as políticas de Stálin, antes consistem na apresentação deste sistema e deste homem como o pior mal do mundo. Para a maioria dos intelectuais ocidentais o dogma de que "Stálin é um monstro" não é susceptível de discussão. É um axioma. Pior, é um tabu. É a chave-mestra que dá acesso à família de autores admitidos pela ideologia dominante. Os acadêmicos dos EUA, mesmo aqueles com pontos de vista não ortodoxos, inscrevem rotineiramente referências hostis a Stálin nos seus trabalhos, mesmo quando não incidem sobre a história da União Soviética, para assim garantirem a sua aceitação política.

A razão de o anti-stalinismo continuar a ser a pedra-de-toque merece mais atenção do que tem tido. Recentemente, acadêmicos como Domenico Losurdo e Grover Furr[13] lançaram luz sobre esta questão. A circunstância de a demonização de Stálin ter o apoio de toda a esquerda, graças a Trótski e a Khruchov, é seguramente um dos fatores. Uma outra razão é o facto de Stálin ser o símbolo personificado da URSS entre 1924 e 1953, o período do êxito da construção do socialismo, e também o período em que o Estado soviético era o maior inimigo do imperialismo. Seja qual for a razão, para os marxistas, como são alguns dos nossos críticos, condescender com estereótipos anti-Stálin e polemizar na sua base, deve ser entendido como uma concessão oportunista à pressão da ideologia da classe dominante. Evidentemente que a rejeição do anti-stalinismo não equivale à beatificação de Stálin, a um amontoado de elogios à sua pessoa, ou ainda menos ao escamoteamento dos problemas associados à sua liderança. Significará antes, um trabalho acadêmico paciente, que use os mesmos critérios que são requeridos para avaliar qualquer líder do século XX.

Conclusão


            As principais críticas levantadas contra os argumentos do Socialismo Traído não resistem a um escrutínio rigoroso. A ideia de que a União Soviética estava condenada por um defeito congênito, a saber, o atraso das forças produtivas, agrada sobretudo àqueles que sonham com um avanço gradual para o socialismo, e àqueles que pensam que os chineses descobriram a estrada de ouro para o futuro. No entanto, tal ideia implica que se ignore os problemas gerados pela NEP nos anos 20 e na China hoje, e significa subestimar as difíceis opções que os soviéticos tiveram de fazer nos anos 20 e 30, bem como os tremendos progressos que fizeram para superar o atraso.

A ideia de que o colapso da URSS em 1991 se deveu ao autoritarismo de Stálin nos anos 30 assenta numa montanha de preconceitos contra Stálin e numa leitura unilateral do seu legado que ignora os seus marcados elementos democráticos. Finalmente, a ineficácia da resistência dos comunistas de base e dos operários à destruição do socialismo não prova a existência de problemas profundamente enraizados do socialismo soviético. Mostra no entanto que a destruição da propriedade socialista, da planificação, dos benefícios sociais e do internacionalismo exigiram a erosão simultânea da autoridade do partido comunista e das instituições da democracia socialista. Se alguma coisa boa adveio do colapso da URSS foi o fato de Cuba parecer ter aprendido a lição.



Notas

[1] Leonard Schapiro, The Communist Party of the Soviet Union (New York: Vintage Books, 1971), 409; Kenneth Neill Cameron, Stalin: Man of Contradiction (Toronto, NC Press Limited, 1987), 80-81.

[2] Terry Martin, The Affirmative Action Empire: Nations and Nationalism in the Soviet Union, 1923-1939 (Ithaca and London: Cornell University Press, 2001), 1-2.

[3] Martin, 387-389.

[4] Goldman, 14.

[5] Goldman, 19.

[6] Richard Pipes, “Flight from Freedom: What Russians Think and Want,” Foreign Affairs (May/June, 2004), 14.

[7] Cuba vs Bloqueo: Relatório de Cuba sobre a Resolution 65/6 da Assembleia Geral das Nações Unidas intitulado “Necesidad de poner fin al bloqueo económico, comercial y financiero impuestopor los Estados Unidos de América contra Cuba” (July 2011), 54.

[8] Interview of Manual Yepe, Havana, Cuba, February 18, 2014.

[9] Interview of Marta Nunez, Havana, Cuba, February 18, 2014.

[10] “Information on the results of the debate on the Economic and Social Policy Guidelines for the Party and the Revolution”, traduzido por Marce Cameron, 2.

[11] Steve Ludlam, “Cuba’s Socialist Development Strategy,” Science & Society 76, no. 1 (January 2012), 47.

[12] Ludlam, 51.

[13] Domenico Losurdo, Staline: Histoire et Critique D’Une Légende Noire and Grover Furr, Khrushchev Lied (Kettering, Ohio: Erythros Press and Media, 2011).

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O fim da União Soviética na perspectiva de um cubano


Por José Luis Rodríguez - foi o Ministro da Economia e Planejamento de Cuba. Foi também vice-presidente do Conselho de Ministros de Cuba e membro eleito da Assembleia Nacional de Cuba | Tradução do Diário Liberdade




I

Este ano completam-se 25 anos do desaparecimento da União Soviética, ocorrido em 25 de dezembro de 1991, após um processo de decomposição que fez naufragar a maior experiência de transformação social na história da humanidade.
Imagem da derrubada do Muro de Berlim
Perderam-se assim o esforço e o sacrifício dos povos que, em meio a uma luta heroica, entregaram as vidas de muitos de seus filhos para construir uma sociedade melhor. Apenas na Segunda Guerra Mundial morreram cerca de 27 milhões de soviéticos enfrentando o fascismo, que conseguiram derrotar a sangue e fogo, abrindo o caminho também para a libertação dos povos do Leste Europeu e dando um impulso decisivo às revoluções anticoloniais no Terceiro Mundo.
No pós-guerra o imperialismo não disfrutou de um poder hegemônico indiscutível. A existência da URSS e dos países socialistas europeus, unida à Revolução socialista na China e depois em Cuba, mudou a correlação das forças políticas no mundo, obrigando a uma afrouxada – não sem resistência – das forças mais reacionárias em todo o planeta, processo que duraria até a década de 70 do século passado.
Contudo, a ofensiva do capitalismo, tanto interna – para liquidar as conquistas dos trabalhadores – como externa – para frear o avanço das políticas mais revolucionárias e progressistas – começou a impor suas condições nos anos 80 sob os governos de Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher na Inglaterra. E isso ocorre – não por casualidade – em meio a um enfraquecimento do campo socialista europeu, tanto na política doméstica, como na arena internacional, significando o antecedente imediato da crise terminal que se desata na segunda metade dos anos 80.
Muito se escreveu nos últimos anos sobre as causas da queda do socialismo na Europa, mas em grande parte dos casos os autores só buscam confirmar – como fez o politólogo norte-americano Francis Fukuyama – a prevalência do capitalismo como único regime possível para a existência da humanidade, em cujo enfoque a experiência socialista só é avaliada como um acidente em uma trajetória que termina com o “fim da história” concebido como o fim das ideologias.
Na verdade, não se esgotou a análise sobre a multiplicidade de causas da derrocada do socialismo europeu, ainda que à luz do tempo transcorrido desde então seja sim possível identificar um grupo de elementos que permitem ilustrar a complexidade da construção socialista e o peso dos erros cometidos nesse processo, que conduziram finalmente à sua frustração.
Este exercício analítico não só tem utilidade desde o ponto de vista do conhecimento histórico, como deve nos permitir assimilar as lições pertinentes àqueles que persistem na construção do socialismo como a melhor alternativa para o desenvolvimento de nossos povos. Não foi com prazer que nosso Comandante em chefe nos advertia em 17 de novembro de 2005:
“Uma conclusão que tirei ao final de muitos anos: entre os muitos erros que todos nós cometemos, o mais importante foi acreditar que alguém entendia de socialismo, ou que alguém entendia como construir o socialismo.”
E mais adiante acrescentava:
“Este país pode se autodestruir; esta Revolução pode se destruir, os que não podem destruí-la atualmente são eles; nós sim, nós podemos destruí-la, e seria culpa nossa.”
Nessa linha de análise, já há algum tempo concedi à destacada jornalista Rosa Miriam Elizalde uma entrevista de trabalho – inédita – onde abordei diversos aspectos deste tema que hoje puderam servir de base para uma reflexão um pouco mais ampla acerca das causas da queda da URSS e qual foi o papel da mídia ali. Igualmente seria útil levar em conta o que foi recentemente publicado no site Catalejo da revista Temas em torno das complexidades da construção do socialismo, intitulado “Se o socialismo não é assimilado conscientemente, ele não decola”.
II
Não se pode negligenciar que o socialismo tem sido até hoje uma sociedade em construção, não totalmente consolidada em nenhuma parte, nem no caso do socialismo real, nem no dos processos atualmente existentes, com os modelos de China, Vietnã, Cuba e da RPD da Coreia.
Examinando as experiências na Europa Oriental e sobretudo na antiga União Soviética, se observa que os processos que derivaram na queda do socialismo tiveram muitos aspectos em comum e – embora houvesse algumas particularidades – os erros também foram os mesmos. Houve um ponto de partida similar, porque em todos os casos existiu a expectativa de superar rapidamente as enormes inequidades, injustiças, desigualdades que o capitalismo havia provocado ao longo de sua história.
Isso levou sempre a tratar de queimar etapas, mas a experiência indica que uma transformação da profundidade que requer o desenho de um modelo socialista, sobretudo em seu elemento fundamental, que é a transformação das pessoas, da mente das pessoas, o que em Cuba tem-se chamado mais recentemente de “mudança de mentalidade”, é um processo muito complicado e de longo prazo. As pessoas não mudam de opinião, não transformam suas ideias por que unicamente se produz uma mudança nas relações de propriedade; é necessário uma mudança cultural muito profunda para transitar do individualismo capitalista a uma mentalidade coletiva, à solidariedade social e gestão econômica consensuada e em todo esse processo desempenha um papel fundamental a política própria do socialismo.
Essa diferença – ao menos conceitualmente – foi advertida desde muito cedo. Lenin afirmou que havia uma grande diferença entre nacionalizar e socializar a produção. Nacionalizar é um ato jurídico que se executa em um momento determinado e provoca a mudança nas relações de propriedade a partir daí. Mas fazer com que as pessoas se sintam donas e que pensem de maneira diferente de como vinham atuando no capitalismo – que leva séculos de funcionamento em todo o planeta – isso não se produz rapidamente. Provavelmente uma parte da sociedade consegue isso, a vanguarda faz isso, mas a grande massa das pessoas não muda assim. E isso foi comprovado por Lenin na prática desde os primeiros anos de existência da URSS.
Então, no meio do fragor revolucionário e após a guerra civil, chegou-se a conclusões que hoje parecem extraordinariamente erradas. De fato, na altura de 1919 se propôs eliminar o dinheiro porque a guerra praticamente havia desmonetizado a sociedade. O dinheiro deixou de cumprir suas funções e começaram a comercializar em forma de troca de uns bens por outros. Parecia que esse era o caminho, porque, por outro lado, Lenin havia retomado de Marx e Engels a ideia de que no socialismo não existiriam as relações mercantis, a partir do nível de desenvolvimento que a sociedade podia alcançar.
No anti-Dühring está apresentado o tema desta maneira. Certamente, Marx e Engels falavam de uma transição em seu contexto, no mundo mais desenvolvido então sob o capitalismo. Uma transição simultânea ao socialismo em tanto que possibilidade real se apresentava então como uma meta alcançável e é isso o que dá lugar à Internacional e aos movimentos que avançam em paralelo nos países europeus do mundo desenvolvido após uma sociedade superior. Existia a ideia de que se poderia, efetivamente, transitar simultaneamente ao socialismo em todo o sistema, e que dado o alto nível de desenvolvimento alcançado se poderia prescindir do mercado em um prazo relativamente breve.
Essa ideia é retomada no contexto da guerra civil que estala em março de 1918 na Rússia e aparecem notáveis expressões de idealismo como aquela que proclamava o desaparecimento do dinheiro. Inclusive essa tese foi conceitualizada no livro O ABC do comunismo, de Nikolay Bukharin e Evgeny Preobrazhensky, publicado em 1920.
Quando termina a guerra civil, no final de 1920, desaparecem essas condições extraordinárias de sobrevivência, se desmobiliza uma enorme massa de camponeses do Exército Vermelho e é preciso começar a produzir em condições normais. Lenin se dá conta de que não é possível seguir utilizando os fatores de mobilização próprios de situações extraordinárias e há que levar em conta as condições muito complexas da reconstrução de um país devastado pela guerra na vida real.
A realidade indicava claramente que com 80% de camponeses essa população não podia mudar sua forma de agir de um dia para o outro, portanto havia que utilizar outros mecanismos para que essas pessoas se sentissem estimuladas a produzir. Não valia dizer apenas que as terras pertenciam a todos, e – em meio a um país ameaçado pela fome – em março de 1921 houve que implantar a Nova Política Econômica, conhecida como NEP.
A NEP, na época, criou quase um cisma teórico, porque um ano antes se havia dito que praticamente estavam criadas as condições para transitar a uma sociedade superior; e logo, em março de 1921, há que voltar ao imposto em espécie, ao pagamento em dinheiro, há que estimular mercantilmente o camponês e há que ir a um processo de reconhecimento da realidade de que a Rússia – como país de desenvolvimento muito baixo – não podia ignorar a necessidade de desenvolver a produção mercantil para sobreviver. Para além de que essa experiência traria outras consequências, Lenin sempre concebeu a NEP como um processo temporário, de transição, até que se criassem as condições para ir à cooperação, primeira fase de socialização da produção, entendendo como esse processo de socialização a produção diretamente vinculada às necessidades da sociedade.
As ideias dessa necessidade de avançar nesse processo foram expostas por Lenin em um artigo intitulado “Sobre a cooperação”, escrito em março de 1923, onde pede que se leve em conta que a NEP não é o caminho definitivo e que é preciso ir estimulando a união das forças produtivas para que a população entenda que trabalhando juntos se tem mais produtividade mediante um processo gradual de cooperação.
Todo esse período inicial de construção do socialismo na União Soviética se dá em circunstâncias extraordinárias: a guerra civil o foi na ordem militar, na ordem da sobrevivência; e também a NEP foi uma circunstância extraordinária.
A partir dos resultados indubitavelmente positivos da NEP quando se recuperam em 1926 os níveis produtivos de 1913, as coisas pareciam marchar a um novo ritmo e já se começa a discutir como abordar a industrialização, ou seja, uma etapa superior de crescimento para chegar ao desenvolvimento.
Lamentavelmente, a extensão temporal das circunstâncias extraordinárias começou a gerar outro fenômeno e isso ocorre em uma conjuntura na qual se incrementa a hostilidade dos países capitalistas contra o socialismo nascente. Desse modo, entre 1920 e meados dos anos trinta, as agressões eram de todo tipo, provavelmente da mesma intensidade das que Cuba padeceu nos primeiros anos do triunfo da Revolução: agressões militares, sabotagens, espionagem, isolamento internacional, fenômenos exacerbados também por erros que inevitavelmente eram cometidos em um processo inédito na criação de uma sociedade de novo tipo. E isso logicamente fez com que o que era uma tática para enfrentar condições extraordinárias se convertesse pouco a pouco em algo aparentemente permanente e que começava a se interpretar o extraordinário como um processo normal de construção socialista. Daí que muitos anos depois o Che – que compreendeu esses perigos – advertia que à NEP não se podia dar caráter de regularidade universal para a construção do socialismo, mas que obedecia às circunstâncias concretas que a URSS enfrentou naqueles anos.
Pode se dizer que a partir da morte de Lenin em janeiro de 1924 começaram a se desenvolver medidas extraordinárias em um cenário que – em muitos aspectos – já não correspondia com as necessidades do momento. Se começam a aplicar normas que – à luz do que ocorreu posteriormente – estão na base do fracasso do socialismo na União Soviética, por exemplo, a cooperativização forçada, que alcança seu clímax entre 1929 e 1934. Daquele chamado de Lenin em 1923 pela cooperação mediante a persuasão, o convencimento, se passa a um processo mediante o qual simplesmente a cooperação é imposta. Foi-se à repressão, supostamente ante circunstâncias extraordinárias, mas já não eram as da guerra ou as da NEP, mas se começa a estender a noção do extraordinário no tempo.
Por outro lado, Lenin, enfermo e incapacitado de exercer a direção do país em circunstâncias muito complexas, foi consciente dos perigos que espreitavam a Revolução de Outubro. Em seu testamento político – documento conhecido como a “Carta ao Congresso” – advertia sobre o perigo da divisão do partido como resultado das divergências entre Josef Stalin – sobre o qual recomendara sua saída do cargo que ocupava por seus defeitos de caráter e métodos arbitrários de direção – e Leon Trotski. Esse perigo se materializaria rapidamente depois de sua morte.
Começa assim a se transitar um caminho que conduziria à desnaturalização do consenso político indispensável no socialismo. Lenin já que havia visto forçado a limitar a participação democrática em 1921 quando da insurreição de Kronstadt, etapa na qual se eliminam as facções dentro do Partido e a possibilidade de fazer oposição a linhas de direção dentro da organização, mas tudo isso ocorre em meio ao perigo de um racha dentro do Partido que foi preciso frear.
No entanto, já em 1923 as divergências internas sobre como avançar para a industrialização levam a que as posições dos trotskistas fossem reprimidas em meio a um debate que podia ser considerado legítimo. Posteriormente, na polêmica entre Bukharin e Preobrazhensky de 1926 sobre como conduzir a industrialização, também ocorre esse fenômeno e o grande debate termina abruptamente em 1927 e desaparecem da cena política os dois oponentes. Preobrazhensky passa a ser uma figura suspensa e Bukharin é separado dos cargos que tem em 1929 e terminaria como diretor do jornal Pravda, uma posição inferior.
Essas graves violações da democracia socialista alcançariam seu ponto crítico nos fenômenos de repressão que ocorrem a partir de 1936. Os quatro processos que houve naqueles anos conduziram praticamente à eliminação física da direção do Exército Vermelho e da direção tradicional do Partido Bolchevique sob acusações de traição que nunca puderam ser realmente demonstrados.
Esses fatos causariam um dano enorme às ideias do socialismo em todo o mundo e são também um outro antecedente da derrubada do socialismo na Europa.
Não obstante, no imediato a causa do socialismo resistiu e em seu nome os povos da URSS venceram na II Guerra Mundial, mesmo que a custa de enormes sacrifícios e se conseguiu reconstruir o país em muito poucos anos.
No entanto, depois do pós-guerra os problemas econômicos começaram a demandar soluções efetivas a contradições que até esse momento não haviam chegado a um ponto crítico.
Um tema não resolvido na prática desde que se iniciou no ano de 1917 a construção efetiva do socialismo na Rússia foi o das relações marcado-planificação, ou poderíamos dizer livre concorrência das forças de desenvolvimento na sociedade e desenvolvimento controlado, previsto, planificado; primeiro porque houve uma grande incompreensão durante muitos anos sobre a essência das relações monetário-mercantis.
Assim como não se podia mudar a mentalidade de quem havia vivido séculos sob a influência do egoísmo capitalista, na economia as estruturas não mudam de um dia para outro e para alcançar essa socialização efetiva faz falta um nível de desenvolvimento elevado. Esse é um processo complicado, de longo prazo, que requer um nível de crescimento das forças produtivas que não se conseguiu até hoje.
Na mesma medida em que não existe socialização suficiente, ou o que dá na mesma, a não correspondência entre o que toda a sociedade faz e o que requer, que espaço resta para concordar esses interesses que às vezes são contrapostos? O mercado. O mercado existe assim objetivamente, dado um determinado nível de desenvolvimento da sociedade, que não se transforma de imediato pelo fato de nacionalizar os meios de produção.
A explicação do porquê subsistia o mercado no socialismo não foi um processo simples e ainda hoje subsistem muitas interpretações erradas a esse respeito.
Uma das primeiras explicações foi dada por Preobrazhensky nos anos vinte, pelo menos é um dos autores que falou mais profundamente sobre o tema. Segundo ele, existiam relações de mercado porque existiam distintas formas de propriedade: estatal, privada, cooperativa e essas relações de propriedade não têm um ponto de contato comum, por isso é necessário o mercado para uni-las com sua interrelação. Argumento relativamente razoável, mas deixava de fora um grande problema: por que o mercado subsiste no seio da propriedade estatal? Ou seja, por que é necessário o dinheiro, o cálculo econômico, a contabilidade, os créditos sob uma mesma forma de propriedade social.
No funcionamento da economia estatal isso não se conseguia compreender, porque durante muitos anos nas análises não se ia à raiz do problema, que consistia em que o mercado existia ainda antes da propriedade privada, ou seja, que podia existir o mercado e não haver propriedade privada propriamente dita: tal é o caso da produção mercantil simples, onde o proprietário é o mesmo produtor.
No transcorrer dos anos se acrescentou maior complexidade à análise, fruto das tentativas de justificar – sem uma base logicamente fundamentada – a presença das relações de mercado no seio da propriedade estatal.
Assim, em 1935, se institucionaliza o cálculo econômico como uma fórmula para dar raciocínio à conduta de direção econômica da sociedade, mas se cometeu um grande erro já que se disse que o cálculo econômico era formal e que nada disso tinha conteúdo. Uma categoria não existe sem conteúdo e o cálculo econômico tem uma base que é a existência do mercado a partir de determinadas condições, mas isso nunca foi então explicado corretamente.
Já em 1951 – ante os problemas que a URSS confrontava para avançar no crescimento extensivo da economia – se abriu novamente a discussão. Stalin – em seu artigo “Os problemas econômicos do socialismo na URSS” – volta a sugerir que a presença das relações monetário-mercantis se devia a distintas formas de propriedade, tese muito similar à apresentada por Preobrazhensky muitos anos antes.
Essa explicação permaneceu sem uma solução científica, até os anos sessenta. É nos debates em torno da reforma econômica na URSS, que duraram de 1958 a 1965, que se começa a se aprofundar na questão de como é possível que o mercado exista se a propriedade privada desapareceu como algo preponderante.
Surgiu então uma explicação – baseada em uma releitura do tomo I de O Capital – que os produtores isolados entre si não encontram formas de conectar seus interesses de modo comum, diríamos, socializando-os. Tem que haver um mecanismo de vínculo entre eles, e o mercado fornece esse mecanismo. Portanto, é o isolamento econômico relativo ainda no seio da propriedade social – que persiste unido a um baixo nível de desenvolvimento relativo na construção do socialismo – o que provoca a existência ou a permanência de relações mercantis no socialismo ainda que não exista propriedade privada, mas essa explicação demorou sessenta anos para chegar, o que provocou um dano terrível à teoria econômica e a todo o funcionamento do socialismo.
III
Para compreender as causas que levaram ao desaparecimento da União Soviética em 1991 é imprescindível remontar à história e, nesse sentido, a etapa inicial do chamado pós-stalinismo é de singular importância.
Com a morte de J. Stalin, em março de 1953, culminou uma etapa muito complexa da história soviética onde as circunstâncias extraordinárias que estiveram presentes na guerra civil, na implementação da NEP, ou durante a coletivização forçada e a primeira etapa da industrialização dos anos 30 se converteram – aparentemente – em fases normais da construção socialista marcadas pela ausência de uma democracia socialista real e violações à legalidade que se manteriam por muitos anos, fenômenos que se replicariam também nas democracias populares europeias que emergiram depois da Segunda Guerra Mundial.
Acerca da controversa personalidade de Stalin, nosso Comandante em Chefe expressaria:
“Sobre ele recai a responsabilidade, ao meu ver, de que esse país tivesse sido invadido em 1941 pela poderosa maquinaria bélica de Hitler, sem que as forças soviéticas tivessem recebido a ordem de alarme de combate. Stalin cometeu, também, graves erros. É conhecido seu abuso do poder e outras arbitrariedades. Mas também teve méritos. A industrialização da URSS e a passagem e desenvolvimento da indústria militar na Sibéria foram fatores decisivos naquela luta do mundo contra o nazismo”.
Eu, quando o analiso, avalio seus méritos e também seus grandes erros, e um deles foi quando expurgou o Exército Vermelho em virtude de uma intriga dos nazistas, o que enfraqueceu militarmente a URSS, nas vésperas da investida fascista.” [1]
Nesse sentido, se pode afirmar que a assinalada ausência de uma autêntica democracia interna nos processos de gestão social, o culto à personalidade, os abusos de poder e a repressão injustificada que estiveram presentes durante boa parte do mandato de Stalin à frente do governo soviético foram, sem dúvida, fatores que incidiram negativamente na causa do socialismo dentro e fora da URSS e constituíram elementos que deixaram uma marca muito negativa na memória histórica desse povo, alimentando tendências negativas no comportamento dos soviéticos que contribuíram também para a queda da URSS ocorrida anos depois.
Após diversos ajustes e demissões na equipe de direção que substituiu Stalin em 1953, ela ficou basicamente integrada por Georgi Malenkov, que ocuparia o cargo de presidente do Conselho de Ministros entre março de 1953 e fevereiro de 1955 e Nikita Krushchov, que ocuparia o cargo de primeiro secratário do PCUS de setembro de 1953 a outubro de 1964 e de presidente do Conselho de Ministros de março de 1958 a outubro de 1964. Em geral, houve um processo de mudanças – não isento de luta entre distintas facções – entre 1953 e 1958 até que se renovou completamente o grupo de colaboradores mais próximos a Stalin, os quais foram enviados a cumprir outras tarefas, mas nenhum foi julgado ou reprimido [2], vivendo uma existência normal até o final de suas vidas.
Os novos governantes soviéticos se enfrentaram então com uma série de obstáculos no desenvolvimento econômico e social que punham de manifesto a necessidade de profundas transformações na política econômica que se vinha aplicando, levando em conta que o país não podia continuar crescendo extensivamente considerando os limites demográficos impostos pela guerra, pelo que era necessário incrementar a produtividade do trabalho, inclusive para brindar maior atenção ao consumo e tudo isso em meio a um confronto crescente com o Ocidente no âmbito político e militar.
No terreno econômico, um dos problemas mais importantes dessa etapa se encontrava na agricultura, que arrastava dificuldades não resolvidas desde os anos da coletivização forçada, ao que se acrescentavam os efeitos do conflito bélico. De tal modo, em 1952 se alcançava uma colheita de cereais de 92,2 milhões de toneladas, o que representava entretanto 3,6% abaixo de 1940. Sobre isso observaria o historiador Alec Nove:
A situação da agricultura nos últimos anos de Stalin esteve, pois, exacerbada pelas intervenções equivocadas da autoridade, pela excessiva centralização das decisões, pelos preços extremamente baixos, pelo insuficiente investimento e pela falta de incentivos adequados.” [3]
Krushchov tentaria solucionar esses problemas com diversas medidas – incluindo um tratamento mais estimulante ao setor privado e cooperativo – mas sobretudo estendendo as áreas agrícolas exportáveis na chamada “Campanha das Terras Virgens” que levou a cultivar 46 milhões de hectares adicionais por mais de 300 mil jovens que se mobilizaram entre 1954 e 1960 em territórios da Sibéria e do Cazaquistão e que – embora não tenha sido a solução permanente para todos os problemas – produziu um aumento notável da produção agrícola do país.
Igualmente começou a ser redesenhada a política de industrialização, dirigindo-a com uma maior prioridade para a produção de artigos de consumo frente ao até então crescimento prioritário da indústria básica.
Nesse contexto e apesar dos ajustes na política monetária que houve que realizar a partir das distorções provocadas pela guerra – incluindo a reforma monetária de 1947, que introduziu um câmbio de moeda com desvalorização – estima-se que os salários reais dos trabalhadores mostraram um notável crescimento entre 1947 e 1952, melhorando seu nível de vida. Essa tendência à melhoria nos níveis de vida da população continuaria durante os anos 60, ainda quando nem todas as medidas que se introduziram produziram os resultados esperados.
Precisamente no esforço para melhorar as condições de vida do povo, Krushchov fomentaria a ideia da coexistência pacífica e – nesse contexto – proporia superar em diferentes aspectos um grupo de indicadores da economia norte-americana, objetivo que não contava com as condições indispensáveis para ser alcançado em tão curto prazo. Não obstante, a taxa de crescimento da produção industrial foi notavelmente elevada na economia soviética nesses anos. Desse modo, entre 1951 e 1955 a indústria cresceu 13,1% na média anual contra 6,2% nos EUA; enquanto que entre 1956 e 1960 o crescimento foi 10,4% em comparação com 2,4% nos EUA. No entanto, o Produto Nacional Bruto da URSS em 1955 representava apenas 40% do dos EUA, proporção que chegaria a 50% dez anos mais tarde, o que denotava a magnitude do enorme esforço produtivo a se desenvolver para igualar ou superar a América do Norte.
Por outro lado, não é possível ignorar que a Guerra Fria aumentaria as tensões entre a URSS e seus antigos aliados da Segunda Guerra Mundial.
De fato, o Plano Marshall, implementado pelos Estados Unidos, terminou sendo um programa de ajuda à Europa ocidental para enfrentar o comunismo. A contrapartida soviética apareceu em janeiro de 1949 quando se cria o CAME, ao tempo que surge a OTAN em abril de 1949 e o Pacto de Varsóvia em 1955 como estruturas militares de confrontação.
Consequentemente, a URSS – que havia se convertido em potência nuclear – elevaria notavelmente seus gastos militares já nesses anos, duplicando o mesmo entre 1948 e 1952. Conforme estimados, esses gastos representavam 17% do PIB em 1950 e em 1960 chegavam a 11,1%, proporções muito superiores às dessas despesas na economia norte-americana, o que supunha um obstáculo maior para o crescimento da economia nacional.
Não obstante, o rápido desenvolvimento defensivo do país permitiu avançar na equiparação do potencial militar com o Ocidente. Desse modo, especificamente na esfera de foguetes, se pôs de manifesto o alcançado quando em 1957 se lançou o primeiro satélite artificial da Terra e quatro anos mais tarde se enviou o primeiro homem ao espaço, conquistas indiscutíveis do complexo científico-militar soviético naqueles anos.
Outra das transformações de maior importância desse período se dirigiria a modificar a situação política interna vigente até 1953.
Nesse sentido, já desde 1955 se produziu uma diminuição das pessoas detidas pelos delitos considerados como políticos e muitas foram reabilitadas ao se comprovar que haviam sido condenadas injustamente.
Um momento chave nessas transformações foi constituído pelo XX Congresso do PCUS celebrado em fevereiro de 1956 e no qual Nikita Krushchov apresentou um relatório a portas fechadas denunciando as violações à legalidade incorridas pelo governo de Stalin desde os anos 30. Esse processo continuaria com as análises do XXII Congresso do PCUS celebrado em 1961, onde se produziu um enfrentamento com o Partido Comunista da China por discrepâncias sobre a forma em que se criticou o stalinismo, o que conduziu a um enfrentamento entre os dois maiores partidos comunistas do mundo que duraria até 1989. Essa discrepância provocou uma divisão dos partidos comunistas de muitos países, fenômeno de consequências muito negativas para o movimento revolucionário da época.
O processo de superação dos erros políticos cometidos apresentou desafios importantes e se pode afirmar que Krushchov assumiu uma grande responsabilidade, ao realizar a análise crítica de uma etapa fundamental na história do país. A partir dessa análise, embora as medidas adotadas fossem positivas, as mesmas resultaram incompletas, já que não se aprofundou nas causas últimas desses fenômenos, não houve um enfrentamento consequente da gestão burocrática predominante na sociedade soviética e tampouco se criaram os mecanismos para assegurar uma participação efetiva da população no governo dessa sociedade.
Ainda, e apesar das limitações de análise, foram eliminadas práticas repressivas e aberto um espaço maior à discussão desses problemas no seio da sociedade soviética, que – até certo ponto – conseguiu se reencontrar com sua própria história.
Assim, durante esses anos se produziram manifestações artísticas de alto valor que refletiram criticamente esses complexos processos, tais como os filmes Chistoye neboou Quando voam as cegonhas e também se publicaram livros de testemunho como Um dia com Ivan Denisovich, do escritor Alexander Solzhenitsyn [4], processos que contrastaram com a visão restritiva da arte que predominou na etapa anterior.
Um fator determinante no trabalho dos dirigentes soviéticos naqueles anos foi o esforço para redesenhar a política e o sistema de direção da economia, com vistas a garantir uma gestão econômica mais eficiente. Nesse sentido, as decisões adotadas por Krushchov em 1957 trataram se avançar a uma planificação descentralizada, para a qual se aboliu a estrutura de direção centralizada de mais de 30 ministérios, os que se constituíram por cerca de 100 conselhos econômicos locais, conhecidos como sovnarkhos, que se reagruparam em 17 regiões em 1961. Essa mudança – sem que previamente se criassem condições para uma transformação de semelhante complexidade – não resolveu tampouco os problemas da direção econômica do país.
Por outro lado, de 1958 até 1965 foram realizados debates sistemáticos dirigidos a superar os problemas do modelo centralizado de gestão, transitando para uma descentralização das decisões.
Realmente a história demonstrou que as decisões centralizadas desempenhavam um papel fundamental quando na economia deviam se enfrentar um conjunto limitado de medidas com vistas a alcançar mudanças estruturais básicos. Em efeito, na evolução econômica da URSS essas decisões permitiram assegurar essas transformações alcançando – por sua vez – altas taxas de crescimento.
No entanto, na medida em que os objetivos de desenvolvimento social começaram a se diversificar, as decisões absolutamente centralizadas deixaram de ser efetivas – embora a eliminação dos seus defeitos mais evidentes tenha permitido avançar rapidamente a curto prazo, tal como ocorreu com as transformações que se implementaram na URSS entre 1953 e 1956 em relação à agricultura e à produção de artigos de consumo.
Chegado um ponto entre o final dos anos 50 e a primeira metade dos anos 60, se pôs de manifesto uma clara desaceleração nos ritmos de crescimento acompanhada do menor aumento da produtividade do trabalho, o que evidenciou a necessidade urgente de uma reforma econômica integral.
O debate se centrou então em quais decisões deviam continuar centralizadas – fundamentalmente as que se referem ao balanço entre os grandes agregados macroeconômicos – e quais deviam ser deixadas para serem adotadas a nível empresarial, utilizando para isso os instrumentos do mercado. Em 1962 esse debate alcançou um ponto de maior intensidade a partir das ideias do economista soviético Evsei Liberman [5] que – essencialmente – propôs concentrar os indicadores das empresas nos ganhos e controlar indiretamente sua gestão mediante mecanismos de mercado.
Como se comentou na primeira parte deste trabalho, emergiu a discussão de como combinar plano e mercado em uma economia socialista, mas sem que estivesse totalmente esclarecido conceitualmente o tema das relações monetário-mercantis no socialismo. Nesse sentido, as opiniões se dividiram: um grupo de países decidiu utilizar os mecanismos de mercado mantendo uma planificação forte (foi o caso da URSS, RDA, Romênia e em menor grau a Polônia), enquanto outros colocaram o mercado como regulador principal da economia (foi o caso de Hungria, Tchecoslováquia e Bulgária) dando lugar aos conceitos que formariam as teses do chamado socialismo de mercado.
Por outro lado, surgiram ideias muito interessantes, algumas das quais não foram levadas em consideração adequadamente. Esse foi o caso dos modelos econômico-matemáticos que se elaboraram em meio a esse debate por destacados acadêmicos como Leonid Kantorovich – um dos criadores da programação linear –, V. Nemchinov e Victor Novozhilov. Tal foi o caso do modelo de gastos de relação inversa elaborado pelo acadêmico soviético Novozhilov que permitia manter um marco de decisões centralizadas e – ao mesmo tempo – possibilitava às empresas achar a variante mais adequada do plano central mediante a chamada centralização indireta [6].
As discussões foram muito intensas e evidentemente – se bem a aplicação das reformas tenha levado a melhores ritmos de crescimento entre 1966 e 1970 na URSS e a maioria dos países socialistas europeus – essa tendência não se sustentou ao longo do tempo.
Em outubro de 1964, Nikita Krushchov foi substituído em seu cargo a partir de erros em que tiveram muito peso a não solução efetiva dos problemas da agricultura e a queda nos ritmos de crescimento da economia soviética naqueles anos.

V

A saída de Nikita Khrushchov do governo soviético em outubro de 1964 marcou o fim do enfrentamento oficial com o fenômeno do stalinismo e também o final de uma conduta que sem dúvida teve méritos, mas do mesmo modo mereceu a crítica de seus contemporâneos pela falta de sistematicidade nas transformações econômicas e políticas que tratou de introduzir; os métodos de direção marcados por uma alta centralização de funções em sua pessoa; a oscilante política agrária, onde os êxitos foram apenas temporários; a insensata competição para igualar a economia dos Estados Unidos em um curto prazo; e os descalabros em política internacional que conduziram à ruptura com a China, ao levantamento do Muro de Berlim, em 1961, e à Crise dos Mísseis, em 1962.
A avaliação histórica da figura de Khrushchov tem sido controversa, pois alguns autores como Roger Keeran e Thomas Kenny – autores do livro O socialismo traído, que foi publicado em Cuba –, avaliam essa personalidade como continuadora de tendências social-democratas no PCUS, estabelecendo uma avaliação claramente tendenciosa e enviesada de seu desempenho. Por outro lado, Hans Modrow – último secratário-geral do Partido Socialista Unificado da RDA, em seu livro A perestroika: impressões e confissões, aponta:
“O fato de que Khrushchov tenha tido o valor de apontar com toda clareza os delitos cometidos em nome de Stalin, e por conseguinte em nome do socialismo, lhe assegura um importante posto. Somente dogmáticos incorrigíveis defendem o critério de que a decadência do socialismo começou com ele.”
A equipe de direção que o sucedeu se iniciou com uma divisão de poderes entre Leonid Brezhnev como secretário-geral do PCUS e máximo dirigente do país, Alexei Kosyguin como presidente do Conselho de Ministros e Anastas Mikoyan como presidente do Presidium do Soviete Supremo da URSS, o qual foi substituído por Nikolay Podgorny em 1965. A partir de 1977 Brezhnev ocuparia também a presidência do país.
Brezhnev, assim como Khrushchov, havia nascido na Ucrânia e ambos tiveram muitos pontos de contato em suas carreiras políticas a ponto de que Khrushchov o considerasse como segundo no comando do Partido na altura de 1964. No entanto, diferentemente de Khrushchov, Brezhnev sempre foi muito conservador em sua atuação e decisões, fator que incidiria em seu exercício como máximo dirigente soviético durante 18 anos.
De tal modo, a equipe de direção do PCUS que se instala em 1964 tratou de buscar uma estabilidade que contrastava com as reformas que havia impulsionado o sucessor de Stalin – muitas delas controversas – durante 11 anos.
Contudo, a situação nesses momentos indicava claramente que eram indispensáveis mudanças no sistema de direção da economia e nessa circunstância os debates que haviam começado em 1958 apontavam também nessa direção, levando em conta que os resultados econômicos mostravam uma queda no ritmo de crescimento da produção industrial, que alcançou 8,6% entre 1961 e 1965 de 10,4% entre 1956 e 1960, ao que se acrescentavam desastrosos resultados das colheitas agrícolas na primeira metade dos anos 60.
Essa tarefa foi assumida por Alexei Kosyguin, cuja trajetória era a de um magnífico dirigente empresarial que havia transitado por cargos de alta responsabilidade estatal desde antes da Segunda Guerra Mundial até o governo de Khrushchov. Em tal sentido, ainda hoje se reconhecem seus méritos como membro do Conselho de Defesa da URSS nos anos do conflito bélico ao organizar a mudança exitosa para o leste das indústrias que, se não fosse isso, ficariam na zona ocupada pela Alemanha.
Após intensos debates, em setembro de 1965, foi aprovada a reforma econômica soviética que tratava de combinar uma maior presença de mecanismos de mercado com uma planificação centralizada, onde esta última mantinha a preponderância.
Novamente desde sua aprovação a adequada combinação entre a gestão macroeconômica e a direção empresarial, traduzida na relação entre a planificação centralizada e a descentralização de um grupo de decisões, não encontrou um canal adequado ao abordar conceitualmente a vinculação entre plano e mercado. Por outro lado, eram evidentes as deficiências de uma economia onde se planificava centralmente até o detalhe todas as operações da empresa. Mas – por outro lado – pretender que o mercado regulasse a atuação da empresa estatal, tomando como princípio orientador básico a rentabilidade, não assegurava que se cumprissem os objetivos a alcançar em uma sociedade socialista.
Se acordou então incluir algumas medidas próprias de uma economia de mercado a nível empresarial com o objetivo de flexibilizar e descentralizar sua gestão – limitando o alcance das transformações propostas por Evsei Liberman em 1962 –, acrescentando-lhe incentivos para administradores e trabalhadores, mas mantendo praticamente sem mudanças o sistema central de planificação.
Nesse último aspecto não se trabalhou com igual intensidade e uma planificação mais flexível na microeconomia, especialmente para a formação dos preços a partir do uso de modelos econômico-matemáticos foi totalmente subestimada. Nos meios acadêmicos se estendeu o critério de que a única solução aos problemas transitava por uma ampliação do mercado ao qual teria que se adaptar à planificação, critério tecnocrático de fatais consequências que se abriria caminho definitivamente na crise do final dos anos 80.
Logicamente, as contradições não demoraram a aparecer levando em conta – também – de que a visão burocrática dos fenômenos econômicos estava presente tanto a nível dos ministérios como das empresas e isso se apreciou claramente pela ausência total de modificações no referido a conquistar uma maior participação dos trabalhadores no processo de tomada de decisões, elemento central para o êxito de qualquer política econômica socialista.
Por outro lado, o esforço de Kosyguin por impulsionar as mudanças encontrou resistência nos níveis superiores de direção e, embora não se possa dizer que Brezhnev se opôs às reformas, tampouco as apoiou visivelmente.
Não obstante, os resultados econômicos – ainda quando não alcançaram os objetivos previstos – tiveram um impacto positivo por quanto cresceu a renda nacional na economia soviética de 1966 a 1970 em 7,8% e manteve uma média anual de crescimento de 5,7% entre 1971 e 1975, cifras que mostraram um desempenho inclusive superior ao crescimento dos Estados Unidos naqueles anos.
A situação começou a mostrar maiores dificuldades quando de 1976 a 1980 a renda cresceu 4,3%, o que motivou novamente a reversão de diferentes aspectos do sistema de direção a uma maior centralização em 1979 e entrou definitivamente em um processo de estancamento de 1981 a 1985, quando só aumentou 3,6%. Além dessas cifras, os fatores intensivos no crescimento da economia – que medem a qualidade desse crescimento – baixaram de 28,4% dos aumentos em 1966-70 a 21,3% em 1976-80.
Nesse último aspecto destaca-se que, sendo a URSS um país com alto potencial científico – o país chegou a concentrar 25% dos cientistas de todo o mundo –, foi difícil o desenvolvimento da inovação e a introdução dos crescimentos científicos técnicos na economia, salvo no complexo militar-industrial.
Adicionalmente, não deve ser deixado de lado que tudo isso ocorre em meio a um processo de crescimento da economia informal, também chamada segundo economia cujo peso – segundo estimados pelos próprios soviéticos – passou de um nível equivalente a 3,4% do PIB em 1960 para 20% em 1988.
Por outro lado, as transformações políticas internas e externas entre 1965 e 1985 tiveram também um muitos aspectos um impacto desfavorável no desempenho econômico, político e social da URSS.
Em primeiro lugar, a limitada abertura à discussão dos problemas da sociedade soviética que se expressou sobretudo na literatura e no cinema, assim como nos debates acadêmicos na época de Khrushchov, praticamente acabou a partir de 1965. Nesse sentido, tudo indica que primou o critério de que o fundamental era a elevação do nível de vida material dos cidadãos soviéticos – fenômeno que efetivamente ocorre entre 1965 e 1975 –, mas não foram atendidos os aspectos que redundariam em uma existência espiritualmente mais plena do homem e no desenvolvimento de uma cultura socialista no mesmo.
Como foi apontado pelos analistas Ariel Dacal e Francisco Brown:
“Tudo isso trouxe como resultado uma lacuna na opinião pública que foi relativamente fácil de ocupar com a propaganda capitalista, que incentivava o descrédito do socialismo, baseada fundamentalmente na incitação ao consumo e à liberdade, o que logicamente surtia efeito em uma população necessitada de consumo e liberdades básicas.”
Essa situação se viu – ademais – agravada pela ausência de vínculos entre a população e a chamada nomenklatura da direção política do país que envelheceu em seus cargos, gozando de privilégios que mancharam a exemplaridade social que deviam ter.
Igualmente o manejo da política exterior soviética durante esses anos que impunha uma linha de ação incondicional a Moscou lavou à invasão da Tchecoslováquia em 1968 para frear as posições social-democratas que se observavam em seus dirigentes, mas em uma ação violatória da soberania nacional desse estado socialista e que daria lugar à chamada Doutrina Brezhnev da soberania limitada na Europa Oriental. Essa decisão que se argumentou como inevitável para evitar a transição ao capitalismo em um país socialista teve um alto custo político que – em última análise – não propiciou a retificação necessária do conservadorismo na direção do PCCh nem conduziu à análise das verdadeiras causas desses acontecimentos.
Uma intervenção similar se produziria com a invasão do Afeganistão em 1979 para apoiar uma das facções em conflito no governo desse país, que se estendeu durante dez anos, onde as tropas soviéticas não conseguiram dominar a situação e que teve nefastas repercussões para o prestígio da URSS no Terceiro Mundo e em particular para o Movimento dos Não-alinhados.
Finalmente, o poderio militar da URSS aumentou de forma notável durante esses anos no contexto de uma política de coexistência pacífica como premissa para preservar a paz entre as duas superpotências, alcançando a paridade estratégica entre elas a custa de um enorme esforço, o que sem dúvida foi uma conquista significativa da parte soviética.
Entretanto, a extrapolação dessa coexistência pacífica às relações com os países que lutavam contra a dominação colonial e neocolonial colocou a direção soviética em uma posição de incompreensão da luta anti-imperialista e anticolonial no Terceiro Mundo. Não obstante isso, e em honra à verdade, deve ser dito que muitos países receberiam para sua luta o apoio militar da pátria de Lenin nos anos 70 e 80.
Quando ocorre a morte de Leonid Brezhnev em 1982 eram ainda mais evidentes a necessidade de reformas econômicas e políticas para sair do estancamento em que se encontrava o país.
Chega então ao poder como secratário-geral do PCUS Yuri Andropov, considerado um homem de firmes convicções e experiência, que havia dirigido os serviços de segurança (KGB) desde 1967. Sua trajetória abarcava desde a luta guerrilheira contra o exército alemão na Segunda Guerra Mundial, passando por diferentes cargos no aparato do PCUS, incluindo seu trabalho como embaixador na Hungria nos anos 50, chefe do departamento do Comitê Central que atendia as relações com outros países comunistas e membro do Burô Político desde 1973.
Era considerado um dirigente culto e consciente da necessidade de mudanças na sociedade soviética, embora não tenha proposto um programa amplo de reformas, mas implementou – a partir de julho de 1983 – uma série de medidas que retomavam aspectos da reforma econômica de 1965 ante o fracasso das decisões adotadas em 1979, as quais foram denominadas de “experimento econômico”.
Andropov enfrentou também a indisciplina laboral, o alcoolismo e a corrupção. Especialmente neste último aspecto se centrou nos cargos de direção mais elevados na sociedade e em 15 meses substituiu 18 ministros e numerosos quadros na nomenklatura do PCUS, ao mesmo tempo em que introduzia pessoas mais jovens nos postos de direção mais importantes, incluindo entre eles Mikhail Gorbatchov.
Apesar de seus esforços – que enfrentaram também forte oposição da burocracia partidária – sua maior limitação foi seu próprio estado de saúde, já que no momento em que foi nomeado máximo dirigente da sociedade soviética com 67 anos sofria de uma insuficiência renal, o que o obrigava a se submeter a diálises de forma regular, situação que foi reduzindo sua capacidade de trabalho até que faleceu em fevereiro de 1984.
A implementação de uma chamada política de estabilidade nos quadros durante a administração de Brezhnev levou a um imobilismo e à não promoção de dirigentes mais jovens, fenômeno que entrou em crise com a morte de Andropov. Daí que se elegesse um candidato de transição – supostamente para ganhar tempo – que acabou sendo Konstantin Chernenko, de 73 anos, quem se encontrava também gravemente doente.
O novo secretário-geral havia desenvolvido sua carreira política essencialmente no aparato do PCUS, onde foi chefe do Departamento Geral do Comitê Central de 1965 – ocupando-se principalmente como chefe de despacho do secretariado geral –, sendo promovido ulteriormente ao secretariado em 1976 e finalmente ao burô político em 1978.
Se reconheceu que Chernenko não era uma pessoa com a preparação necessária para o cargo que ocuparia, levando em conta a complexidade da situação interna prevalecente na URSS em 1984 e a situação internacional, marcada por tensões crescentes nas relações com os Estados Unidos.
Terminava assim uma etapa onde na altura de 1980 só 7% dos membros permanentes do Burô Político e 17% dos ministros tinham 60 anos ou menos.
Konstantin Chernenko faleceu em março de 1985, 13 meses depois de ter assumido o cargo. Nesse ano foi eleito secretário-geral do PCUS Mikhail Gorbatchov, que permaneceria no mesmo posto até 1991, quando desaparece a União Soviética.

VI

Ao morrer [Konstantin Chernenko], em março de 1985, foi promovido como secretário-geral do PCUS Mikhail Gorbatchov. Com 54 anos de idade, era o secretário-geral mais jovem eleito após a Segunda Guerra Mundial e também o primeiro que não havia participado dela.
Gorbatchov havia se graduado como jurista e desenvolvido sua carreira trabalhando em diferentes estruturas do Partido, onde ocupou cargos de direção na região russa de Stavropol desde 1962 e como secretário-geral entre 1970 e 1978. Ingressou no Comitê Central do PCUS em 1971 e em 1978 foi promovido a membro do Secretariado do Comitê Central a cargo da agricultura – anteriormente havia obtido o título de agrônomo em estudos por correspondência – sendo promovido a membro do Burô Político em 1980.
Já sob a direção de Andropov, Gorbatchov havia vindo se destacando como um quadro em ascensão. Tratava-se sem dúvidas de uma pessoa inteligente, com capacidade de direção e facilidade de comunicação, a qual contrastava com a personalidade de seus antecessores.
Não obstante, sua experiência prática na direção do Estado e sua formação em temas de política econômica e relações internacionais resultariam muito limitadas para o cargo que ocuparia em 1985.
O panorama que o novo dirigente enfrentaria era complexo. A URSS sofria um significativo desgaste sociopolítico como resultado do estancamento econômico, a deterioração de indicadores sociais básicos e também como consequência das sequelas – apenas parcialmente superadas – de um sistema político que havia falhado em dar uma resposta estável para superar adequadamente o capitalismo. Esse último aspecto era evidente pela burocratização dos processos de direção, a falta de renovação de dirigentes e a consequente carência de mobilidade social, assim como a falta de uma cultura socialista plenamente desenvolvida e a ausência de participação efetiva dos trabalhadores na gestão democrática da sociedade.
Precisamente no referido a esses últimos aspectos, chamava a atenção a passividade da sociedade soviética diante dos problemas da vida cotidiana, fenômeno que se manifestaria também nos últimos anos de existência da URSS. No que se refere à necessidade de uma nova forma de vida, o politicólogo russo Serguei Kara-Murza forneceria uma interpretação interessante sobre o tema, ao apontar:
“... a vida do povo soviético com seu bem-estar garantido (inclusive se este tivesse sido grande!) se converte em uma existência sem objetivos (…) Para um cidadão médio era enfadonho viver no socialismo soviético desenvolvido. E nosso projeto não propôs saída alguma para esse tédio (…) O socialismo que os bolcheviques construíram era efetivo como projeto para pessoas que haviam sofrido desgraças (…) Mas o projeto não respondia às exigências de uma sociedade próspera que já havia sofrido e esquecido a desgraça.”
Por outro lado, estava presente o crescimento de uma economia privada ilegal, também chamada de segunda economia que, – segundo estimativas já mencionadas anteriormente – alcançava um nível equivalente a 20% do PIB em 1988. A presença dessas ilegalidades se vinculava à extensão da corrupção no aparato estatal soviético durante o mandato de Brezhnev, fenômeno que foi inicialmente objeto de atenção prioritária por Yuri Andropov em seu breve período de mandato.
No âmbito da política econômica e do sistema de direção da economia, a ziguezagueante evolução das reformas dos últimos 20 anos não haviam trazido os resultados esperados. Não obstante, é preciso esclarecer que – apesar das dificuldades apontadas – a economia soviética não se encontrava então em meio a uma crise irreversível e mesmo que seja possível falar de um estancamento naqueles anos, há que se referir também à necessidade – não satisfeita – de consolidar um crescimento intensivo por meio do incremento da produtividade do trabalho. Apesar das dificuldades, deve se apontar que o nível de existência material do cidadão soviético médio havia aumentado notavelmente entre 1965 e 1985.
Tampouco deve ser deixado de lado o fato de que desde o final da década de 1970 a URSS enfrentava um reforço na ofensiva política e militar do Ocidente, encabeçada por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher na Grã-Bretanha. Buscava-se – por diferentes vias – exacerbar as dificuldades econômicas do país por meio de uma política de sanções; romper o equilíbrio militar, especialmente no teatro de operações europeu, através da instalação de novas armas estratégicas – particularmente o Sistema de Defesa Antimísseis – no que se conheceria popularmente como “guerra das estrelas” e elevar as contradições internas nos países da Europa Oriental, assim como suas diferenças com a União Soviética. Um impacto evidente dessas pressões se manifestaria no gasto estimado entre 3 e 4 bilhões de dólares anuais para sustentar a presença de tropas soviéticas no Afeganistão – de onde só se retirariam em 1989 – e a transferência de 1 a 2 bilhões de dólares anualmente para apoiar o governo polonês frente à ofensiva antissocialista do Sindicato Solidariedade a partir de 1981.
Como é lógico, os temas econômicos despertaram a imediata atenção de Gorbatchov e sua equipe. De fato, as primeiras medidas adotadas em 1985 apresentaram uma reconsideração das metas de crescimento para o quinquênio 1986-1990.
Curiosamente, somente dois meses após ocupar o cargo o secretário-geral mostraria um critério que contrastava com os que predominavam desde as reformas econômicas anteriores: “Muitos de vocês veem a solução de seus problemas acorrendo a mecanismos de mercado no lugar da planificação direta. Alguns de vocês veem o mercado como o salva-vidas para os problemas econômicos, mas, camaradas, vocês não devem ver o salva-vidas mas sim o barco e o barco é o socialismo”. Mas esses critérios – assim como muitos outros – mudariam rapidamente na visão do máximo dirigente soviético.
Na evolução da política interna da URSS durante os últimos anos de sua existência, podem ser delimitadas claramente três etapas: 1985-1987, 1988-1989 e 1990-1991.
Durante os dois primeiros anos do mandato de Gorbatchov, se deu continuidade à maioria das linhas traçadas por seu antecessor, mediante uma política na qual pretendia-se aperfeiçoar a gestão econômica nos marcos do socialismo. Muitas das ideias acerca da necessidade de profundas mudanças já haviam sido formuladas por Gorbatchov no Pleno do CC do PCUS de dezembro de 1984 – onde já se falava da perestroika – e no Pleno correspondente a abril de 1985. A ênfase seria posta no desenvolvimento mediante a utilização do potencial científico técnico do país.
A apresentação de um programa econômico mais amplo se fez no XXVII Congresso do PCUS em fevereiro de 1986, que – em síntese – contemplava tornar mais eficiente a direção centralizada da economia, estender resolutamente a autonomia às empresas, passar a métodos econômicos de direção, utilizar para a administração as estruturas orgânicas modernas e democratizar todos os aspectos da administração.
Um aspecto que incidiria nos resultados da direção da sociedade soviética foi a decisão imediata de substituir dirigentes em todos os níveis, o que – embora pudesse ser justificado a partir de diferentes pontos de vista – na prática contribuiria para a instabilidade que se observou nos processos de direção durante esses anos. De tal modo, no prazo de um ano se substituiu 50% dos membros do Burô Político, cinco dos 14 secretários do partido a nível republicano, foi dado baixa a 50 dos 157 secretários do partido a nível regional e distrital e no total se substituíram cerca de 15.000 administradores.
Simultaneamente, foram promovidos ao Burô Político sucessivamente três dirigentes que exerceriam uma grande influência em Gorbatchov e no futuro da sociedade soviética nos anos seguintes.
Essas pessoas foram Alexandr Yakovlev, que havia ocupado cargos de importância na esfera da propaganda e da mídia no Comitê Central, e que também fora embaixador no Canadá durante 10 anos e que se tornaria secretário do Comitê Central e um dos assessores políticos mais importantes de Gorbatchov; Eduard Shevardnadze, que havia dirigido o partido na Geórgia e que passaria a ocupar o cargo de Ministro de Relações Exteriores; e Boris Yeltsin, dirigente do partido na cidade de Sverdlovsk, que foi designado para o importante cargo de secretário do PCUS na cidade de Moscou. Os três eram conhecidos – com diferentes matizes – por suas posições críticas e reformistas de corte social-democrata, que derivariam para expressões claramente anticomunistas e antissoviéticas no decorrer desses anos.
Durante esse período inicial, se sucederam rapidamente um conjunto de medidas de caráter socioeconômico.
Em primeiro lugar e para impulsionar o desenvolvimento, em junho de 1985 foram criados 23 novos complexos científicos e modificado o plano quinquenal em outubro para priorizar a produção de equipamentos tecnológicos avançados. Para se ter uma ideia da mudança que se implementava, deve ser levado em consideração que naquela época mais de 70% do potencial científico da URSS estava vinculado diretamente ao complexo industrial-militar, portanto uma transformação a curto prazo no emprego desse potencial era uma tarefa de enorme complexidade para intensificar a produção e ao mesmo tempo assegurar a defesa do país.
Em uma decisão de elevado impacto social, Gorbatchov lançou uma campanha contra o consumo de álcool em maio de 1985, um problema que – efetivamente – durante muitos anos havia incidido negativamente na saúde e na disciplina laboral soviética. Para isso, diminuiu a produção de vodka e limitou os horários de venda da bebida, medidas que – no entanto – não atacaram as complexas e profundas raízes do fenômeno na história do povo russo, não contaram com o necessário apoio social e a longo prazo resultaram ineficazes, já que se produziu um notável incremento da produção da aguardente caseira em alambiques clandestinos.
Igualmente, em maio de 1986, se implementou uma nova legislação para controlar os rendimentos não provenientes do trabalho, em um processo que tampouco aprofundou as causas da existência, desenvolveu a economia informal e não produziu resultados socialmente favoráveis. Por outro lado, em novembro desse ano se aprovou uma nova legislação sobre o trabalho individual que contribuiria para formalizar um conjunto de atividades que se desenvolviam a margem da lei. Curiosamente, nessa legislação não se autorizava o trabalho assalariado, princípio que se abandonaria posteriormente. Finalmente em novembro de 1987 aprova-se uma legislação que permite a entrega em arrendamento de bens estatais, preâmbulo da privatização de bens públicos que se abriria caminho pouco tempo depois.
Também como exemplo das mudanças institucionais que, com um enorme alcance, foram empreendidas a toda a velocidade na estrutura do governo, no final de 1985 se criou uma espécie de superministério para gerenciar a produção agroindustrial sob a denominação de Gosagroprom, que flexibilizou a produção agrícola com uma orientação mercantil, mas que tampouco produziu os impactos esperados e se dissolveu com a mesma rapidez com que foi criado, em abril de 1989.
No âmbito da transformação nas relações de propriedade, foi aprovada a criação das cooperativas não agropecuárias em outubro de 1986, que – segundo o critério de vários analistas – serviu mais para cobrir atividades ilegais do que para criar uma nova forma de gestão social. De igual modo, em janeiro de 1987 o país se abriu novamente ao investimento estrangeiro, fenômeno que não havia estado presente desde os anos da NEP e que teve um frio acolhimento no exterior, pois no final do ano só haviam sido investidos 89,3 milhões de dólares sob esse conceito.
Uma transformação de enorme transcendência no âmbito da propriedade estatal foi a aprovação de uma nova lei da empresa estatal em junho de 1987 sob os princípios da autonomia, a autogestão e o autofinanciamento que abria um espaço maior ao mercado reduzindo o papel da planificação e a direção central das empresas. Nessa legislação se percebia uma clara influência da reforma econômica que sobre o tema havia se desenvolvido desde o início dos anos 1980 na Hungria.
Finalmente, o Pleno do Comitê Central em junho de 1987 aprovou o que se denominou como Programa para a Reforma Econômica Radical, que – em síntese – assentaria as bases para ingressar no socialismo de mercado na URSS. Ao longo desse processo pode se apreciar como durante o período que vai de 1985 a 1987 se vai operando uma transformação da política econômica que rompe com as premissas das reformas econômicas anteriores e começam a aparecer sinais claros de mudanças que se distanciam das premissas essenciais adotadas para aperfeiçoar o socialismo.
Nesse ponto deve ser destacado que houve dois conceitos cujo conteúdo presidiria as transformações a serem empreendidas, mas que iriam se transformando com o tempo. O primeiro era a perestroika, que pode ser traduzido como reconstrução ou reestruturação e o segundo foi a glasnost, ou transparência. Em ambos os casos, inicialmente o alcance das mudanças a serem introduzidas se enquadravam nos marcos do socialismo, unindo-se às exigências pela democratização dos processos de direção social com esse mesmo referente.
No entanto, já a partir dos acordos do Pleno do Comitê Central do PCUS de janeiro de 1987 se introduz um conceito de democratização com referentes liberais próprios da sociedade burguesa e se vão desfazendo os aspectos socialistas de atuação da perestroika e da glasnost como instrumentos para aperfeiçoar o socialismo, transformando-se gradualmente em elementos para seu questionamento.
Simultaneamente – no âmbito dos meios de comunicação – a exigência de maior transparência na governabilidade social se focaliza em uma revisão histórica do desenvolvimento da URSS e – particularmente – a uma avaliação crítica do fenômeno do stalinismo. Nesse processo abriu-se caminho a inimigos declarados do socialismo e nunca foi realizada uma análise ponderada da complexa história do país, o que fez com que tudo isso conduzisse a uma campanha que terminaria questionando as indiscutíveis conquistas do socialismo na sociedade soviética e a criar uma enorme confusão na sociedade.
Ao terminarem esses dois primeiros anos, os resultados econômicos mostraram uma tendência ao retrocesso com o crescimento da renda nacional que baixou de 2,3% em 1986 para 1,6% em 1987; a produção industrial decresceu de 4,4% para 3,8% e a produção agropecuária de 5,3% se contraiu 0,6%.
A partir desse momento o debate oscilaria em torno da aplicação das reformas, por um lado, e da adoção de medidas imediatas de estabilização econômica, por outro.

VI

Como foi destacado anteriormente, o debate em torno da necessidade de estabilizar a economia para poder levar adiante as reformas se agudizou notavelmente entre 1988 e 1989.
A partir dos resultados econômicos de 1987, era evidente que o país se enfiava em uma crise derivada do desequilíbrio financeiro interno unido ao vazio que começava a se manifestar na direção da economia.
Além disso, as contradições no seio da direção do país se manifestaram com força na esfera política. Surgiram dois cenários de intenso debate interconectados: por um lado, se desenvolvia uma intensa campanha que questionava o papel do PCUS na sociedade soviética e, por outro, se criticava com força a ineficiência da reforma econômica aplicada até esse momento. Neste processo cabe destacar o enfrentamento de Gorbatchov com Yeltsin em novembro de 1987, que levou à separação deste último de seus cargos no PCUS, embora ocuparia um cargo ministerial de segunda ordem posteriormente, até ressurgir como líder da oposição em 1989.
O enfrentamento e a divisão no seio do Partido seriam conhecidos publicamente no Pleno do CC celebrado em janeiro de 1988, quando a direção dos chamados reformistas radicais acusou o próprio Partido de se opor à perestroika, tendência que acabaria por se impor na XIX Conferência do PCUS celebrada em junho desse ano, em que – também – se aprovou liquidar o papel do Partido na direção da gestão econômica do país.
Se produziu assim uma reformulação da linha política aprovada no XXVII Congresso e se consagrou a necessidade de uma mudança no sistema político soviético para transformá-lo em um regime presidencialista, com um parlamento no melhor estilo das democracias burguesas. Isso se materializou durante o primeiro semestre de 1989 ao se eleger em maio o novo Congresso de Deputados Populares e o Soviete Supremo da URSS. O Congresso teria 1.500 deputados eleitos para um período de cinco anos, deles 750 assentos seriam reservados para o Partido e as organizações afins. Dentre os deputados se elegeria uma espécie de Soviete Supremo bicameral como órgão permanente que deveria prestar contas ao Congresso.
Em meio a essas polêmicas, o debate econômico enfrentou duas tendências: por um lado, aqueles que defendiam uma rápida implementação das reformas e por outro os que expressavam a necessidade urgente de estabilizar a economia previamente.
Nessas discussões venceu o critério de ir em busca da estabilidade mediante uma maior liberalização da economia. De tal modo, em maio de 1988 se aprova uma nova lei de cooperativas não agropecuárias, que – a partir das consequências que gera o crescimento da especulação – seria modificada em outubro de 1989; no mês de julho de 1988 se limita a participação estatal nas empresas, restringindo assim seriamente a capacidade do planejamento estatal para dispor de produções e serviços com a intenção de serem utilizados de acordo com os interesses sociais; e no verão do mesmo ano se aprova pela primeira vez o arrendamento de terras de propriedade estatal para serem exploradas por trabalhadores individuais ou cooperativas, processo que aponta cada vez mais para a privatização da propriedade pública.
No ano seguinte, diante das enormes dificuldades no mercado interno, os produtos de primeira necessidade são racionados e é estabelecida uma regulação dos preços em novembro de 1989, mas ambas as medidas não cumprem os objetivos previstos a partir do enfraquecimento do Estado para sua implementação frente às medidas que fortalecem cada vez mais os mecanismos de mercado. Essa tendência se fortalece adicionalmente pela aprovação que se produz de arrendar bens ou empresas estatais por entidades privadas ou cooperativas.
No entanto, o elemento que marcou formalmente o início do fim da economia socialista foi a aprovação em novembro de 1989 da primeira proposta integral de transição a uma economia de mercado regulada. Nessa proposta se incluía uma denúncia inequívoca da planificação central e uma defesa do mercado; defende-se o pluralismo nas formas de propriedade; e se exigia uma mudança radical no sistema econômico, por meio de um processo gradual de introdução da economia de mercado a partir de 1991.
Conjuntamente no âmbito político se produziu uma transferência do poder real do Partido e do Estado para o Congresso de Deputados Populares e para o novo Soviete Supremo eleitos em maio de 1989, iniciando-se assim a reconfiguração do aparato estatal de acordo com o modelo do Ocidente.
Não de menor gravidade era o incremento dos conflitos interétnicos, como o desencadeado no Cazaquistão em 1986 e o enfrentamento armado em 1988 entre Armênia e Azerbaijão pelo enclave de Nagorno-Karabakh. Ao mesmo tempo era iniciado um processo secessionista de Letônia, Lituânia e Estônia – que declaram sua soberania entre maio de julho de 1989 – ao qual seguiria a insubordinação frente ao poder central do resto das repúblicas da União.
A evolução dos indicadores socioeconômicos desses anos marcou o último período de crescimento da URSS. Assim, a renda nacional aumentou 4,4% em 1988 e desacelerou 2,4% em 1989; a indústria cresceu respectivamente 3,9% e 1,7%; o setor agropecuário aumentou 1,7% e diminuiu em seu avanço para somente 1% em 1989; enquanto que a dívida externa se elevou de 43 bilhões para 54 bilhões de dólares. Já em 1989 a pobreza afetava 15% da população soviética.
Essa situação crítica não passou inadvertida por uma parte da classe operária que – pela primeira vez – em julho de 1989 desencadeou extensas greves no setor da mineração que estalaram na Ucrânia, Rússia e Cazaquistão, encabeçadas por grupos independentes a margem dos sindicatos oficiais, dando início a uma série de protestos sociais que já não desapareceria até o fim da URSS.
Por outro lado, durante esses anos na esfera das relações internacionais a posição soviética sofreria um deterioramento marcado já visível no fracasso da cúpula Gorbatchov-Reagan em Reykjavik celebrada em outubro de 1986, ao que seguiria o início de um processo de desarmamento unilateral da URSS frente à resistência e beligerância ocidental.
Como parte desse processo se produziria simultaneamente a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, tornada pública em fevereiro de 1988; o anúncio em dezembro de 1988 da redução unilateral de 500 mil efetivos militares no exército soviético e a retirada de seis divisões de tanques da Europa Oriental; assim como a declaração de julho de 1989 de que as nações membros do Pacto de Varsóvia estavam livres para escolher seu próprio caminho ao socialismo, o que significou na prática o princípio do fim da aliança política com as chamadas democracias populares europeias e seus governos. Este último se expressaria dramaticamente nas posições de Gorbatchov em relação ao governo de Erich Honecker na RDA [7].
A desconexão soviética do que começou a ocorrer na Europa Oriental a partir da derrubada do socialismo na Polônia, onde as eleições do verão de 1989 levaram ao poder o Sindicato Solidariedade em detrimento do POUP [o Partido Comunista] e até a reunificação alemã em outubro de 1990, foi um processo negativo em todos os aspectos para a direção da URSS, a que – no entanto – não fez outra coisa senão se retrair diante desses acontecimentos, sem reagir ao que essa enorme transformação na correlação de forças na Europa significava para a política internacional do PCUS.

VII
Os anos de 1990 e 1991 mostraram uma União Soviética em uma crise política terminal.
Uma rápida sucessão de acontecimentos em 1990 marcou – com toda clareza – o rumo definitivo para a destruição do Partido e do Estado multinacional. De tal modo, o Pleno do CC do PCUS de fevereiro – dominado pelas forças de direita – aprovou a renúncia do Partido de ser a força dirigente da sociedade soviética; Gorbatchov foi eleito presidente em março, tratando de concentrar todo o poder possível em suas mãos e governando por decreto, ao tempo que Yeltsin ressurgia como presidente da Rússia em maio, encabeçando o bando dos “democratas” e iniciando uma confrontação em todos os níveis com o governo central. Em meio a esses acontecimentos, em julho de celebrou o XXVIII Congresso do PCUS, que confirmou a capitulação de seus dirigentes e revelou o surgimento de diferentes facções no Partido [8], enquanto o centro da discussão foi como transitar para uma economia de mercado.
Durante o ano de 1990 os debates econômicos no aparato estatal se concentraram em como acelerar a passagem para o capitalismo. Surgem assim o “Plano dos 400 dias” em fevereiro, o “Plano dos 500 dias” em julho e o chamado “Plano do Governo” em setembro. Depois de um intenso debate parlamentar no outono desse ano, se adotou o plano apresentado por Gorbatchov, conhecido como o “Plano Presidencial”, resultado de múltiplos compromissos políticos e onde se recolhiam os postulados fundamentais do “Plano dos 500 dias”. Previamente havia sido outorgada total legalização à propriedade privada em março e em outubro havia sido liberalizado totalmente o investimento estrangeiro.
Também cabe apontar que essas transformações não envolviam somente a URSS. Assim, em junho de 1990, o governo soviético decidiu unilateralmente que a partir de 1991 as trocas comerciais nos marcos do CAME [ou Comecon – Conselho para Assistência Econômica Mútua] seriam realizadas a preços do mercado mundial e em divisas livremente convertíveis, terminando assim de um só golpe todo o esquema de colaboração que vinha funcionando durante mais de 40 anos, ao acabar com os preços preferenciais e o pagamento em rublos transferíveis.
Essa decisão teria uma forte incidência em nosso país e – após infrutíferas comunicações [9] com a direção soviética – Cuba se viu obrigada a proclamar o início do Período Especial em 29 de agosto de 1990.
Os resultados econômicos de 1990 foram desastrosos: a renda nacional caiu 4%, a indústria 1,2%, o setor agropecuário 2,3% e a pobreza golpeou 27,6% da população.
As medidas econômicas e as decisões políticas adotadas em 1991 revelavam um estado de desespero na direção do governo. Desse modo, diante do crescente separatismo das repúblicas soviéticas, foi realizado um plebiscito em março de 1991 em que a população votou majoritariamente por manter a URSS, o que não freou a tendência de desintegração, ainda que Gorbatchov tenha dedicado todo o seu esforço infrutífero à assinatura de um novo tratado da União.
No âmbito da economia, foi implementada em março uma reforma monetária e de preços que elevou os mesmos sem que se compensasse adequadamente os estratos mais vulneráveis da sociedade. Tudo isso provocou um forte repúdio da população e determinou o fracasso das medidas propostas.
Em abril o governo aprovou um pacote de medidas de emergência que avançava no processo de desestatização e privatização, embora deixasse sua implementação nas mãos das repúblicas.
Na medida em que o ano transcorria, se fez cada vez mais evidente a luta do governo para conservar o poder, ainda a custa de maiores concessões ao Ocidente, partindo da suposição absurda de que os governos burgueses estariam interessados em ajudar a URSS em sua transição para o capitalismo mas sob as bandeiras de um socialismo reformado, ao menos formalmente.
Um exemplo dessas posições foi a viagem aos Estados Unidos dos economistas Evgueni Primakov e Gregor Yavlinksy em maio de 1991 para discutir o programa de reformas com especialistas norte-americanos, incluindo o secretário de Estado James Baker. O pedido de recursos financeiros com esse propósito foi fixado entre 150 e 250 bilhões de dólares.
Como resultado dessas consultas e contando com o suposto apoio ocidental, em junho de 1991 se aprovou um novo plano de transição ao capitalismo conhecido como “Plano Yavlinsky”.
Formando parte desse plano e diante da ausência de uma resposta clara, Gorbatchov se dirigiu à Cúpula do Grupo dos Sete que foi celebrada em Londres em julho de 1991. Contudo, o dirigente soviético não alcançou nenhum dos resultados esperados. Não foi sequer convidado oficialmente e teve ignorada sua carta de 23 páginas enviada a cada um dos mandatários ali reunidos.
O fracasso dessa missão foi uma grande humilhação para o governo soviético e as contradições no seio dos distintos grupos de poder presentes na direção do país explodiram em 18 de agosto de 1991, quando um grupo de ministros e membros do Comitê Estatal para Situações de Emergência [CESE] [10] – encabeçados pelo vice-presidente Guennadi Yanaev – tentaram reverter a situação por meio de um golpe de Estado.
Entretanto, deve se destacar que esses elementos não estavam contra à transição à economia de mercado. Melhor dizendo, eles resistiam em aceitar a forma pela qual a transição vinha transcorrendo, especialmente ao apontar no Chamado que emitiram, entre outras críticas: “Somente gente irresponsável pode confiar em certa ajuda do exterior.”
Essa última tentativa de frear a forma em que estava ocorrendo a transição para o capitalismo fracassou e não contou nem com o apoio do exército nem da população.
De fato, tempos depois foi descoberto que os golpistas haviam consultado Gorbatchov para que se pusesse à frente do golpe e enfrentasse Yeltsin pela força.
Ainda hoje o significado do ocorrido em agosto de 1991 permanece sem ser esclarecido em muitos aspectos. No entanto, ficou claro que os líderes do golpe – entre os quais se encontravam o chefe da KGB [11], Vladimir Kriuchkov, e o ministro da Defesa, Dimitri Yazov – pensavam que Gorbatchov estaria a seu lado e assim haviam assegurado a Yeltsin, mas quando Gorbatchov recusou as proposições dos principais dirigentes do CESE propagou o pânico, posto que não tinham absolutamente nenhum plano para a tomada do poder.
Após a tentativa de golpe de Estado, instalou-se um vazio em que o presidente da URSS perdeu efetivamente todas as suas faculdades e Boris Yeltsin emergiu como o “defensor da democracia”, passando a ter o pode real a partir de sua posição como presidente da Rússia.
A partir daí praticamente todas as repúblicas se declararam independentes. Em setembro o PCUS foi ilegalizado [12] e se dissolveu o Congresso de Deputados Populares, criando-se estruturas políticas provisórias que regeriam durante o período de transição que se abriu até o final do ano.
O desastre econômico do último ano de existência da URSS se refletiu em uma queda de 15% da renda nacional, diminuiu 7% a produção industrial e a produção agropecuária foi reduzida em 9%. No final de 1991, 31% da população soviética vivia na pobreza.
Sob a direção efetiva de Yeltsin, em 21 de dezembro seria constituída a Comunidade de Estados Independentes com 11 das 15 repúblicas federadas [13], em 25 de dezembro Gorbatchov renunciou e em 31 de dezembro de 1991 a União Soviética desapareceu oficialmente.

- Conclusão.

Como foi apontado nos artigos anteriores, o desaparecimento do socialismo na URSS foi motivado por múltiplas causas, que se engendraram durante um longo período de tempo e no qual o papel das diferentes personalidades políticas em seu devir histórico contribuiu de diversas formas para o desdobramento final.
Um primeiro fator essencial na derrubada foi a ausência de uma verdadeira cultura socialista, o que não assegurou a motivação ideológica capaz de conseguir com que o homem identificasse seu projeto de vida pessoal com os interesses mais altos da sociedade, o que, por sua vez, supunha a participação democrática e consciente daquele na tomada de decisões apropriadamente consentidas entre todos os seus membros [14].
Um elemento chave para entender a complexidade da situação já era destacado por Lenin em seus últimos escritos quando apontava que o desafio essencial era alcançar mais eficiência na empresa comunista em relação à capitalista, sobre o que destacava: “(...) ou passamos essa provação com o capital privado ou fracassamos por completo. Para nos ajudar a sair bem nesse prova temos o poder político e uma série de diversos recursos econômicos e de outro tipo; temos tudo o que queiram, menos capacitação (…) o que nos falta é cultura no setor dos comunistas que desempenham funções de direção.” [15].
Essa cultura – que pode também ser entendida como o conhecimento indispensável para construir o socialismo – nunca se conseguiu criar plenamente. Em seu lugar, frente às inevitáveis contradições desse processo, surgiu a imposição autoritária e a repressão do dissenso por parte de uma elite dirigente divorciada das massas e burocratizada até a medula que esqueceu os ensinamentos de Lenin, cegou as potencialidades do socialismo como sistema e contribuiu para o colapso desse modelo.
Após a morte de Lenin, “Stalin foi o rosto visível e a figura representante da nova camada dirigente que foi rompendo gradualmente vínculos com a direção genuinamente revolucionária (com maior ênfase depois da morte de Lenin), e foram se desfazendo dos mecanismos fraquíssimos de controle político das massas” [16].
“Aos principais cargos administrativos foram chegando figuras de nível secundário dentro da revolução, fato motivado, entre outros fatores, porque muitos antigos combatentes pereceram durante a guerra civil, ou foram se separando das massas com promoções ou cargos de menor relevância ou porque simplesmente o cansaço dos duros anos de combate e as circunstâncias hostis em que se vivia esmurecia a resistência de alguns homens. Essa foi uma das fontes de onde a casta em gestação se nutriu.” [17]
A isso se somaria a tradição burocrática do estado czarista, do qual muitos ex-integrantes foram utilizados como pessoal técnico especializado, mas que também portaram o germe do processo de burocratização do estado socialista desde o início da Revolução.
Nesse contexto, a imposição de decisões a partir dos níveis superiores de direção, sem gestar o apoio político indispensável para sua aplicação, conduziu a fenômenos como a coletivização forçada da terra no início dos anos 30 e a um processo de industrialização por marchas forçadas, que deixou suas marcas em mais de uma geração de soviéticos.
Adicionalmente e ao contrário do que ocorreu sob a direção de Lenin – que sempre, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, estimulou o debate interno sobre diversos aspectos da construção socialista –, nos anos 30 Stalin enfrentou a oposição a suas ideias e para isso desencadeou um processo de expurgos internos dentro do próprio aparato do partido e do estado soviético que levou à liquidação física de sua direção histórica, processo que culminaria com o assassinato de Trotsky no México em 1940.
Ainda hoje dá trabalho avaliar o enorme impacto negativo que esses processos tiveram para a direção da União Soviética [18], a construção do socialismo e as ideias do marxismo em geral.
Essas tendências negativas só foram criticamente analisadas de forma parcial pela direção do PCUS durante um curto período de tempo – de 1956 a 1961 – e os efeitos dos erros cometidos não foram superados pelos sucessivos governos soviéticos que existiram até o desaparecimento da URSS em 1991.
Entretanto, embora os aspectos políticos tenham tido um peso decisivo na evolução do socialismo soviético, também os erros no âmbito da economia teriam uma significativa participação nisso. Nesse caso, trata-se especialmente da incorreta interpretação das relações monetário-mercantis e o papel do mercado no socialismo, ao assimilá-los como uma simples técnica para a atribuição ótima de recursos na microeconomia, o que – ao ser generalizado – deu origem ao chamado socialismo de mercado, que gerou um impulso a tendências economicistas e tecnocráticas, deixando de lado a necessidade indispensável de compensar os efeitos sociais negativos da economia mercantil.
Outros muitos erros foram derivados dessas causas essenciais. Entre eles cabe destacar a subestimação do consumo; o atraso secular da produção agropecuária; a compartimentação da ciência limitada ao âmbito do complexo militar-industrial, não aplicando seus resultados à produção e aos serviços da esfera civil; e a expansão excessivamente onerosa do gasto militar.
Os métodos de direção aplicados e seus efeitos nocivos propiciaram também o aparecimento da corrupção, o enriquecimento ilícito e a expansão do mercado negro na economia soviética, especialmente nos últimos 20 anos de sua existência. A isso se somaria uma consciência social penetrada por práticas consumistas e a ausência cada vez maior de um compromisso real com a sociedade socialista entre uma parte crescente da população.
No entanto, apesar de todos os erros e contradições, a sociedade soviética mostraria avanços inquestionáveis que elevaram o nível de vida e o fortalecimento do estado soviético baseado no enorme esforço de seu povo.
O risco da simplificação na análise de processos históricos tão complexos sempre esteve presente. Por isso é indispensável nesse ponto assinalar que na interpretação da história do chamado socialismo real, a maioria das análises contrapõem o ocorrido com o que teoricamente deveria ter sucedido, ao que se acrescenta a tendência de muitos autores a não levar em consideração as condições em que esses processos transcorreram realmente e seu impacto no desenvolvimento dos povos, ao compará-los com a alternativa que o capitalismo teria oferecido para seu desenvolvimento.
Certamente não se trata de justificar a posteriori os resultados da experiência socialista soviética a todo o custo, mas muitas vezes se expressam critérios que só refletem os ângulos mais obscuros do socialismo e se descarta até o mais modesto reconhecimento ao que essa experiência pode ter deixado de positivo.
Nesse sentido, além de considerar todas as agressões que o povo soviético e seus dirigentes tiveram que enfrentar, não é possível esquecer que as novas relações sociais a serem criadas deviam ser conscientemente assumidas pelos trabalhadores, em um processo de acelerada aquisição de conhecimentos e assimilação crítica da realidade, que supunha simultaneamente a superação dos hábitos da sociedade mercantil e a implantação da solidariedade social.
Esse processo – inédito na história – supunha um desenvolvimento político e ideológico de adaptação às novas condições sociais que não poderia transcorrer sem atravessar complexas circunstâncias e profundas contradições, especialmente se for levada em conta a tradição que durante séculos levou o ser humano a se enfrentar com seus semelhantes para conseguir sobreviver.
Na medida em que os fatores subjetivos não se desenvolveram suficientemente para permitir uma compreensão dessa complexa transição, foi até certo ponto lógica primeiro a aceitação e depois a assimilação acrítica de todo o arsenal de ideias do sistema capitalista, cujas armas deterioradas – como havia advertido o Che – não podiam servir para a construção da nova sociedade.
A visão política e a coragem necessária para transitar para o socialismo em meio às enormes dificuldades que esse processo apresentava se expressou claramente nas valorizações de Lenin e os companheiros bolcheviques que seguiram seus passos. Mas sua genialidade e sacrifício não os eximiu de cometer erros, aos quais se somaria depois a fraqueza humana dos dirigentes que em nome do socialismo não puderam ou não quiseram desenvolver suas potencialidades como sociedade superior na luta entre os dois sistemas.
Faltaria apenas a gestão de uma pessoa como Mikhail Gorbatchov que, supostamente combatendo as deformações do socialismo soviético, terminou alimentando as tendências anticomunistas e pró-capitalistas presentes na direção do país, contribuindo assim, decisivamente, para a aceleração do processo de destruição da URSS.
Ao se produzir o desaparecimento oficial da URSS em dezembro de 1991, uma parte dos antigos dirigentes do PCUS – nos quais se sintetizaram muitas das carências e erros do socialismo soviético – passou a encabeçar a transição ao capitalismo à frente dos novos estados que haviam surgido.
Foram os casos de Boris Yeltsin na Rússia, que governou o país entre 1991 e 1999; Islam Karimov, que preside o Uzbequistão desde 1992 até os dias atuais [N.T.: Karimov faleceu em setembro de 2016, aos 78 anos]; e Nursultan Nazarbaev, que presidiu o Cazaquistão nesse mesmo período. Também ocorreu a continuidade de antigos dirigentes soviéticos nos casos do Azerbaijão com Gueidar Aliyev, que foi dirigente do país entre 1993 e 2003; no Quirquistão, onde Askar Akayev governou o país entre 1990 e 2005 e na Geórgia com Eduard Shevardnadze, que foi presidente entre 1992 e 2003.
No caso da Rússia, o governo de Yeltsin não somente se caracterizou pela aplicação de uma terapia de choque de um enorme custo econômico e social para o povo russo mas também deu lugar ao que alguns autores denominaram como “capitalismo delinquencial” ou “capitalismo criminoso”, considerando sua atuação a margem da lei e seu estreito vínculo com a oligarquia ou a máfia russa.
A atividade dos grupos mafiosos se manifestou claramente através de notórios escândalos durante os anos 90 e vários de seus principais representantes ocuparam importantes posições oficiais. Nomes como Boris Berezovski, Mikhail Khodorkovski, Vladimir Potanin, Roman Abramovich, Vladimir Gussinski e Oleg Deripaska são representativos da nova oligarquia russa integrada por pessoas que se enriqueceram rapidamente por meio da corrupção, do suborno e do crime, também ocupando pessoalmente cargos de importância no aparato estatal.
Se alguma prova fosse necessária para demonstrar o que se perdeu do socialismo nos 74 anos de existência da URSS, bastaria examinar os resultados da proclamada transição ao capitalismo real.
Na realidade, o desaparecimento do socialismo como sistema não produziu um avanço no desenvolvimento da sociedade, mas o contrário. Todas as repúblicas que integravam a URSS – em diferente medida – passaram para o mais brutal modelo neoliberal, cujos custos e consequências ainda hoje estão sendo pagos.
Basta assinalar que somente na Rússia durante os anos 90 não se conseguiu recuperar o PIB de 1991 – isso só se alcançaria em 2004, 13 anos depois –, a população reduziu de 148 milhões para 140 milhões de habitantes; a expectativa de vida entre os homens baixou de 65,5 para 57,3 anos; emigraram mais de 200 mil cientistas para o Ocidente; o salário real diminuiu 68,3% e a aposentadoria mínima real 67%; o coeficiente de GINI – que mede a desigualdade na distribuição de renda – subiu de 0,27 para 0,48; o rublo – que antes de 1991 era cotado acima do dólar – hoje um dólar equivale a 64.246 rublos daquela época; no final dos anos 90 calculava-se que 50,3% da população estava na pobreza, enquanto que a taxa de homicídios triplicou e a Rússia estava entre os 20 países mais corruptos do mundo.
Apesar de ter ganhado as eleições de 1996 – destacadas como fraudulentas por todos os observadores – o desgaste político de Yeltsin se acelerou, o que contribuiria a crise econômica de agosto de 1998, que marcou o ponto mais baixo no desempenho da economia russa pós-soviética, a qual se somou o deterioramento da própria saúde do mandatário. De tal modo, em agosto de 1999 Yeltsin nomeou Vladimir Putin como primeiro-ministro.
Putin provinha dos serviços de inteligência soviéticos, onde alcançou um grau de tenente coronel. Entre 1991 e 1996 trabalhou na equipe de Anatoli Sobchak, prefeito de São Petesburgo. Em 1996 foi trabalhar na administração do Kremlin e em julho de 1998 foi nomeado chefe do Serviço Federal de Segurança.
A escolha de Putin para suceder Yeltsin surpreendeu muitos analistas. Apesar de não ter figurado no centro da política russa até então, mostrou capacidade de dar continuidade e – ao mesmo tempo – desenvolver múltiplas iniciativas para recuperar a indispensável estabilidade do país e começar uma gradual recuperação de sua economia.
Enquanto às estruturas políticas, em 2001 Putin fundou o partido Rússia Unida, que desde então tem mantido a maioria dos votos no parlamento russo, permitindo que ele governe – junto a Dimitri Medvedev – sem grandes dificuldades internas.
Durante seu mandato – e especialmente a partir de 2007 – as posições nacionalistas de Putin foram se fortalecendo, enfrentando com maior força os interesses hegemônicos do Ocidente e prestando especial atenção à recomposição do poderio militar do país. Tudo isso lhe valeu um grande apoio popular, com políticas que também têm melhorado gradualmente as condições de vida da população.
Atualmente os indicadores socioeconômicos da Rússia não mostram os desastrosos resultados da época de Yeltsin, mas a economia ainda não mudou no essencial a sua estrutura produtiva e as crises impactam nela com maior força em relação a outros países desenvolvidos. Trata-se assim de uma sociedade capitalista “de segunda ordem” a qual – além disso – os Estados Unidos buscam destruir no aspecto militar.

Notas
[1] Ver Cien horas con Fidel. Conversaciones con Ignacio Ramonet (Segunda Edição. Revisada e enriquecida com novos dados). Oficina de Publicaciones del Consejo de Estado, Havana, 2006, página 206.
[2] A única exceção foi o caso de Lavrenti Beria, que por sua responsabilidade direta na repressão à frente dos órgãos de segurança do país desde 1938, foi julgado e executado em dezembro de 1953.
[3] Ver Alec Nove, Historia económica de la Unión Soviética. Alianza Editorial, Madri, 1973, p. 324.
[4] Esse livro foi publicado em Cuba em 1963.
[5] Suas teses foram conhecidas em Cuba ao se publicar seu livro Métodos económicos para la elevación de la efectividad de la produción social. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975.
[6] Em Cuba se publicou sua obra fundamental, La medición de los gastos y sus resultados en una economía socialista. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975.
[7] Para este trabalho, o autor se apoiou no capítulo I de seu livro El derrumbe del socialismo em Europa (Ruth Casa Editorial e Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2014) e no ensaio “La perestroika en la economía soviética (1985-1991)” incluído no livro de Serguei Glazov, Kara-Murza e Batchikov El libro blanco de las reformas neoliberales en Rusia. 1991-2004 (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2007). Também se recomenda o capítulo I do livro de Ariel Dacal e Francisco Brown, Rusia Del socialismo real al capitalismo real (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2005), assim como os capítulos 4 e 5 do livro de Roger Keeran e Thomas Kenny Socialismo traicionado. Tras el colapso de la Unión Soviética 1917-1991 (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2013).
[8] Sobre isso pode se ver o livro de Hans Modrow, La perestroika: impresiones y confeciones (Cuba Sí Edición Ost, Berlim, 2013, capítulos 4 e 5).
[9] Nessa altura já haviam renunciado ao Partido 250 mil militantes.
[10] Essa situação deu lugar “(...) a numerosas comunicações, intercâmbios, cartas minhas ao chefe de governo, cartas minhas ao companheiro Gorbatchov, presidente da URSS, troca de comunicações, gerenciamentos de todos os tipos, porque era incerta a situação de 1991: que acordos iríamos fazer, que mercadorias iríamos receber. E como resultado de todos esses intercâmbios e conversas se conseguiu um acordo para 1991 (…) Esse acordo significava uma perda de mais de 1 bilhão de dólares para Cuba (...)”, Discurso pronunciado pelo Comandante em Chefe Fidel Castro Ruz na inauguração do IV Congresso do Partido Comunista de Cuba, em IV Congreso del Partido Comunista de Cuba Discursos y documentos (Editora Política, Havana, 1992, p. 28).
[11] Segundo diversas interpretações, o CESE havia sido formado no mesmo ano de 1991 diante da perda de governabilidade da equipe de direção frente à crescente beligerância de Boris Yeltsin e em seu seio haviam tido lugar várias polêmicas com Gorbatchov, que iam elevando o tom das discrepâncias com ele. Contudo, se apontou como eixo das contradições principais fenômenos de perda de áreas de influência e corrupção, tese que se mantém no campo da polêmica. Ver Keeran e Kenny, Op. Cit. pp. 269-278. Ver também uma interpretação diferente no livro citado de Serguei Kara-Murza, capítulo 26.
[12] Siglas em russo do Comitê de Segurança do Estado.
[13] Esse processo se iniciou na Rússia. Em outras repúblicas o PCUS foi extinto.
[14] Não integraram a CEI Letônia, Lituânia e Estônia. [A Geórgia só aderiu à comunidade em dezembro de 1993].
[15] Para este trabalho, o autor se apoiou no capítulo I de seu livro El derrumbe del socialismo em Europa (Ruth Casa Editorial e Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2014) e no ensaio “La perestroika en la economía soviética (1985-1991)” incluído no livro de Serguei Glazov, Kara-Murza e Batchikov El libro blanco de las reformas neoliberales en Rusia. 1991-2004 (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2007). Também se recomenda o capítulo I do livro de Ariel Dacal e Francisco Brown, Rusia Del socialismo real al capitalismo real (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2005), assim como os capítulos 4 e 5 do livro de Roger Keeran e Thomas Kenny Socialismo traicionado. Tras el colapso de la Unión Soviética 1917-1991 (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2013).
[16] V.I. Lenin, “Informe político al undécimo congreso del partido” em La última lucha de Lenin. Discurso y escritos (1922-1923), Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2011, pp. 55 e 69.
[17] Lenin havia percebido os perigos que carregava a personalidade de Stalin e desde seu leito de doente se pronunciou ao escrever: “Stalin é muito rude, e este defeito, ainda que tolerável em nosso meio e nas relações entre nós, os comunistas, é intolerável no cargo de secretário-geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem em uma maneira de retirar Stalin desse cargo e designar em seu lugar outra pessoa que em todos os aspectos tenha sobre o camarada Stalin uma só vantagem: a de ser mais tolerante, mais leal, mais cortês e tenha mais consideração para com os camaradas, menos caprichoso etc.” (V.I. Lenin. Carta al congreso del partido, Op. Cit. pp. 232-233. Desde já nesse documento Lenin se pronunciaria também criticamente sobre outros membros do burô político, mas alertando especialmente sobre o perigo de ruptura pelo enfrentamento entre Trotsky e Stalin, coisa que a história se encarregaria de confirmar pouco tempo depois.
[18] Dacal e Brown, Op. Cit. pp. 4-5.
[19] Basta o seguinte exemplo: “O Comitê Central do Partido Comunista eleito em 1934 tinha 71 membros. No início de 1939 restavam 21. Três morreram de morte natural, um (Serguei Kirov) foi assassinado, outro se suicidou, 9 foram tidos como fuzilados e outros 36 desapareceram.” (G.D.H. Cole. Historia del Pensamiento Socialista. Tomo IV Socialismo y Fascismo 1931-1939. Fondo de Cultura Económica, México, 1963, p. 233.