Jones Manoel da Silva
Victória
Hissa Hirosue Sonnenberg
Introdução
Praça De Tiananmen |
A ascensão da China à hegemonia
global é hoje um quase-consenso entre acadêmicos, políticos e jornalistas de
todo mundo. A retórica do, aparentemente, inevitável século chinês é admitida
inclusive por lideranças norte-americanas[1]. O
fenômeno do crescimento econômico chinês já foi chamado de o mais
impressionante da história moderna[2],
mesmo essa afirmação sendo equivocada, afinal o período soviético entre os anos
30 e o início da Segunda Grande Guerra continua sendo o maior e mais impressionante
exemplo de desenvolvimento econômico em um curto período de tempo, partindo de
uma base precária e sem práticas colonialistas.
De toda forma, depois da derrubada
da União Soviética e superada a histeria com o crescimento do Japão, a expectativa
dos anos 90 era de uma hegemonia inconteste por longo tempo dos EUA. Poucos
anos depois, entretanto, essa certeza simplesmente desapareceu. A China está
hoje entre os países que mais cresce no mundo, provoca um forte e intenso
“realimento” do comércio mundial (especialmente na Ásia), e está próxima de se
tornar a maior detentora de ciência e tecnologia do mundo, afinal, já forma
mais técnicos e engenheiros que os EUA; é uma investidora mundial que, em
poucas décadas, pode ser a maior exportadora de capital do mundo; promove uma
readequação das instituições de governança global e promete, nos próximos vinte
ou trinta anos, ser o maior mercado consumidor do mundo[3].
É evidente, porém, que a ascensão
chinesa não acontecerá sem resistência e luta. No campo da luta ideológica, a
peleja contra a ascensão chinesa se combina com o combate ao comunismo e, num
só cavalo de batalha, temos a articulação de sinofobia, anticomunismo e
orientalismo. A produção do conhecimento, que nunca foi neutra, não escapa a
essa gigantesca batalha ideológica, e as
produções ocidentais (produções acadêmicas, filmes, documentários, músicas
etc.) sobre a China apresentam viés de mitologias políticas, que buscam evitar
um deslumbre pelo desenvolvimento chinês.
O objetivo deste ensaio, sem
qualquer pretensão de originalidade, é mostrar como a ideologia de um
neoliberalismo com características chinesas é algo que não se sustenta, a
partir de um estudo sério do processo histórico chinês e dos dados disponíveis,
procurando explanar as análises que consideramos corretas, e demonstrar que a
ascensão chinesa tem como principal pressuposto e explicação a conquista da
soberania nacional, através da grande Revolução de 1949, e uma estratégia de
desenvolvimento balizada na planificação econômica, na propriedade pública dos
meios de produção em setores estratégicos da economia, na aquisição e
desenvolvimento prioritário da ciência e tecnologia e no controle e coordenação
dos fluxos de capital, e que a construção da imagem da China como neoliberal corresponde
a uma grande guerra ideológica que visa encobrir esses elementos.
1.
China: entre o mito e a verdade.
Quando o tema é a China, é comum a
afirmação de que todos os trabalhadores estão em condição de semi-escravidão,
numa situação de trabalho despida de quaisquer direitos trabalhistas e
regulação estatal, e com média de tempo de trabalho de 16h[4].
Essa suposta situação laboral é associada ao chamado neoliberalismo chinês: à
ideia de que, com as reformas de Deng, a China aderiu ao neoliberalismo[5];
comprovado pela participação predominante do capital estrangeiro no
desenvolvimento chinês[6].
E esse neoliberalismo, associado ao domínio do capital estrangeiro, são provas
de que a China só conseguiu alcançar seu crescimento com o abandono da
Revolução Chinesa e do Maoísmo[7];
e o abandono deste último levaria o país à categoria de capitalista, como
qualquer outro [8].
Na maioria das vezes em que é citado
nas análises correntes, esse “neoliberalismo” não é rigorosamente definido, mas
tomado como auto evidente, a partir da expansão das relações mercantis na
China, exibição de dados sobre privatizações e o elogio, repetido como mantra,
de que, na China, não existem níveis mínimos de regulação das relações
trabalhistas.
Fica na penumbra o fato de que a
China é um país de dimensões continentais, que possui mais de um bilhão de
habitantes, e que comporta em sua estrutura produtiva diversos processos de
trabalho e relações de produção. Os trabalhadores chineses migrantes que estão
ocupados nas Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), estão realmente sujeitos à
níveis de exploração odiosos e condições de trabalho especialmente degradantes.
Mesmo com todo o sensacionalismo dos monopólios de mídia, não são uma distorção
total as reportagens que mostram as condições de vida horríveis nas ZEEs.
As condições de trabalho e níveis de
exploração chamam à mente um processo de acumulação originária, com a conversão
de ex-camponeses em trabalhadores assalariados-urbanos. Contudo, é de uma extrema
ingenuidade atribuir as taxas de crescimento chinesas e as conquistas do seu
desenvolvimento econômico e científico tecnológico a esse padrão de exploração,
afinal, como bem lembrou Trotsky acerca da URSS, a exploração em níveis
brutalizados existe em diversos países capitalistas
O
mundo burguês começou por fingir que não via os êxitos econômicos do regime dos
sovietes, que são a prova experimental da viabilidade dos métodos socialistas.
Perante a marcha, sem precedentes na História, do desenvolvimento industrial,
os sábios economistas a serviço do capital ainda tentam muitas vezes manter
profundo silêncio, ou então se limitam a relembrar “a excessiva exploração” dos
camponeses. Perdem assim uma excelente ocasião de nos explicar por que razão a
exploração desenfreada dos camponeses, na China, no Japão e na Índia, nunca
provocou um desenvolvimento industrial acelerado, nem mesmo em grau diminuto,
comparado ao da U.R.S.S. (TROTSKY, 1980, p.5).
E
Ao contrário do que se acredita, a
característica mais atraente da RPC [República Popular da China] para o capital
estrangeiro não foi apenas sua imensa reserva de mão de obra barata; há mais
reservas como essa pelo mundo afora, mas em nenhum lugar atraíram tanto capital
quanto na China. A característica mais atraente, como argumentaremos, foi a
elevada qualidade dessa reserva em termos de saúde, educação e capacidade de
autogerenciamento, combinada à expansão rápida das condições de oferta e
demanda para a mobilização produtiva dessa reserva dentro da própria China (ARRIGHI,
2008, p. 357).
Mas essa não é a questão central.
Através de uma cuidadosa operação de encobrimento da realidade chinesa, a
ideologia dominante procura ocultar a diversidade de processos de trabalho e
relações de produção no país, transformando-as em um exemplo de “liberdade de
contrato” (no sentido de ausência de legislação trabalhista), e, em exemplo
neoliberal, um dos países com maior controle estatal da atividade produtiva no
mundo. Vejamos.
1.1. Papel do Estado chinês na atividade produtiva.
Nos últimos trinta anos, os salários
na China têm tido ganhos reais e uma tendência quase ininterrupta de aumento.
Isso é mais significativo ainda se considerarmos que, no mundo todo, a
tendência é que ocorra o processo inverso: perda do poder de compra e
desvalorização dos salários. O número de empregos pouco qualificados, de
simples manufaturas, também vem reduzindo, com a crescente ampliação do domínio
tecnológico da China e sua estrutura produtiva industrial cada vez mais
complexa[9].
O padrão de empregos nas zonas
especiais, com vigência da superexploração da força de trabalho, também vem
reduzindo, como resultado de uma série de ações do Estado. A primeira delas é o
gigante e ambicioso projeto do Partido Comunista Chinês de redução das
desigualdades regionais, com a interiorização do desenvolvimento para o Oeste e
a supressão do antagonismo campo/cidade, com a ampliação da urbanização e do
acesso aos modernos equipamentos de consumo coletivo[10].
Esse processo de urbanização têm reduzido, em ritmo acelerado, o número de
trabalhadores migrantes que precisavam sair de suas aldeias para trabalhar e
garantir sua subsistência, se submetendo a baixos salários e péssimas condições
de trabalho.O segundo elemento é que a China passa por uma mudança de padrão de
desenvolvimento, até então extensivo, ou seja, com foco em um grande volume de
exportações com o ciclo de capital fechando predominantemente fora, para
intensivo, com o papel preponderante do mercado interno e do consumo doméstico[11].
Aumento contínuo dos salários, facilitação do crédito para o consumo popular,
ampliação dos direitos sociais, como a instituição de um sistema de seguridade
social universal[12]
(também na contramão da tendência mundial, que é a destruição de direitos
sociais e econômicos), e o maior rigor do Estado com as condições de trabalho
são parte desse processo de fortalecimento de um mercado interno capaz de
sustentar longos ciclos de acumulação e expansão econômica[13].
Além disso, há na China complexas
relações de propriedade que são difíceis de categorizar pela tradição
marxista.. Arrighi (2008) nos fala dos trabalhadores das Empresas de Aldeias e
Municípios (EAMs), onde a propriedade é coletiva, pois pertence aos trabalhadores
das aldeias ou municípios , mas é administrada pelo PCCh, estabelecendo uma
relação de controle do processo produtivo apartado dos produtores diretos.
Percentuais dos seus lucros devem ser reinvestidos na produção e no
melhoramento técnico e produtivo; outra porcentagem aplicada no custeio de
direitos sociais como educação, aposentadorias etc., numa política de consumo
coletivo da riqueza socialmente produzida; e, por fim, outra porcentagem dos
lucros é redistribuída entre os trabalhadores da empresa como forma de salário.
A propriedade não é privada, é
coletiva, mas o controle dos processos de trabalho não está nas mãos do
produtor direto, apesar de parte significativa da riqueza produzida ser
socialmente consumida. Ao mesmo tempo, essas empresas operam num ambiente de
mercado competitivo. Definir essas relações como “capitalistas” ou
“socialistas” seriam, em última instância, simplificá-las em sua complexidade.
Diz o autor:
O resultado foi o crescimento
explosivo da força de trabalho rural envolvida em atividades não agrícolas: de
28 milhões de pessoas em 1978 para 176 milhões em 2003, tendo grande parte
desse aumento ocorrido nas EAMs. Entre 1980 e 2004, as EAMs criaram quatro
vezes mais empregos do que se perdeu em emprego público e urbano coletivo.
Embora entre 1995 e 2004 o aumento do emprego nas EAMs tenha sido bem menor que
a redução do emprego público e urbano coletivo, no fim do período as EAMs ainda
empregavam duas vezes mais trabalhadores do que todas as empresas urbanas
estrangeiras, privadas e de propriedade conjunta somadas (...) Em 1990, a
propriedade coletiva das EAMs foi atribuída a todos os habitantes da cidade ou
aldeia. Entretanto, cabia aos governos locais nomear e demitir administradores
ou delegar essa responsabilidade a algum órgão governamental. A alocação dos
lucros das EAMs também foi regulamentado, tornando obrigatório que mais da
metade deles fosse reinvestido na própria empresa, a fim de modernizar e
expandir a produção e
aumentar as verbas destinadas à
assistência social e aos prêmios, e a maior parte do que sobrasse fosse
empregado em infraestrutura agrícola, prestação de serviços tecnológicos,
previdência e assistência social públicas e investimentos em novas empresas
(...) boa parte do crescimento econômico chinês pode ser atribuído à
contribuição das EAMs para o reinvestimento e a redistribuição dos lucros
industriais nos circuitos locais e para seu uso em escolas, clínicas e outras
formas de consumo coletivo (ARRIGHI, 2008, p. 367-369).
Além disso, as generalizações sobre
a situação da força de trabalho nas zonas especiais escondem as condições
diferenciais nas empresas estatais – evidentemente que o mito do neoliberalismo
chinês precisa ocultar o papel estratégico das empresas estatais. É amplamente
conhecido o maior nível salarial e as melhores condições de trabalho nas
empresas estatais e como, historicamente, a seguridade social no modelo de
transição socialista chinês deixou sob responsabilidade das empresas a política
social com seus trabalhadores. A força de trabalho empregada nas empresas
estatais acaba gozando de uma política social diferenciada e de níveis de
participação nas decisões políticas de organização dos processos de trabalho
muito maiores[14].
Mas o setor estatal chinês não é cada dia menor devido à adesão ao
neoliberalismo? A coisa não é bem assim.
A noção de que a China aderiu ao
neoliberalismo abrindo a economia, abandonando a regulamentação estatal,
planificação econômica e a propriedade pública dos meios de produção, e
confiando ao capital estrangeiro o controle da dinâmica de acumulação não
corresponde à realidade.
2. As reformas chinesas
As reformas de Deng tiveram, como
principal objetivo, aumentar em ritmo acelerado a competitividade na economia
chinesa (consequentemente, a exploração dos trabalhadores), procurando fazer
uma seleção: acabando com as empresas não competitivas e forçando processos de
reestruturação das que queriam sobreviver. As reformas do PCCh acabaram com o
subsídio para empresas deficitárias, forçaram uma redução de custos, aumentaram
os investimentos em tecnologia e ganhos de produtividade, e induziram processos
de fusão e monopolização em diversos setores da economia (ARRIGHI, 2008, p.
362-64).
A abertura econômica foi,
primordialmente, uma maneira de expor as empresas chinesas estatais e nacionais
privadas à concorrência dos grandes monopólios estrangeiros, visando absorver
os maiores níveis tecnológicos dessas empresas e conseguir alcançar os
patamares de competitividade necessários para disputar “mercados” pelo mundo[15].
Mas o Estado não foi demitido da produção, como reza a cartilha neoliberal,
muito menos se eximiu de regulação, nem o planejamento central foi encerrado.
Os dados disponíveis afirmam que os
setores estratégicos para direcionar a acumulação de capital – energia,
minérios, setor bancário e financeiro, indústrias estratégicas como produtoras
de bens de capital, construção civil, P&H etc. – estão, ou totalmente, ou
parcialmente, nas mãos do Estado[16].
O Estado chinês controla os ritmos e direciona o processo de acumulação através
de mecanismo indiretos – como o Estado controla o custo da energia e o crédito,
por exemplo, ele pode direcionar o crescimento de determinado setor através de
planejamento indicativo – e diretos através do investimento estatal.
Há ainda pesquisas recentes que
afirmam que o peso da economia pública na sociedade chinesa vem crescendo
devido à crise de 2008. O setor mais ligado ao capital privado está centrado na
exportação e, com a crise capitalista que explode com o estouro da bolha
imobiliária dos EUA, a demanda pelas exportações chinesas vem sendo reduzida e
existe uma fuga de capitais da China para outros países da Ásia com menos regulamentação
e custos da força de trabalho (o aumento constante dos salários e a pressão por
melhores condições de trabalho estaria afugentando empresas da China); nesse
cenário, o PCCh aposta em um amplo programa de investimento e expansão do setor
público, para compensar a redução da economia privada na dinâmica de acumulação
chinesa. O XIX Congresso do PCCh, que acontecerá no segundo semestre de 2017,
terá uma forte disputa entre a tendência do Partido que defende mais mecanismos
de mercado, ou até mesmo uma total liberalização, e os setores do PCCh que
querem fortalecer, ainda mais, o planejamento econômico e o setor público da
economia.
3. O Estado chinês e o capital estrangeiro
É comum que órgãos como o Fundo
Monetário Internacional, Banco Mundial, Agências de Risco e grandes monopólios
critiquem o “controle excessivo” do Estado chinês nos empreendimentos privados.
Ao contrário do padrão de penetração do capital estrangeiro em países
dependentes como o Brasil, onde o capital estrangeiro recebe “incentivos fiscais”
(leia-se isenção de impostos por décadas), o terreno, obras de readequação do
fluxo de mercadorias e pessoas de acordo com seus interesses, subsídios em
custos de produção (como energia e água) e outras benesses sem qualquer
contrapartida, como lei de remessa de lucros ou transferência de tecnologia, o
padrão de relação do Estado chinês com o capital estrangeiro é outro.
A imensa maioria das indústrias
estrangeiras que chegam ao Brasil e à América Latina, no geral, são de baixa
tecnologia e compõem as fases inferiores, mais simples, das cadeias produtivas
mundiais dos monopólios. No caso chinês, o Estado recusa setores de baixa
produtividade e domínio tecnológico: há um conjunto de leis que limitam a
apropriação privada do lucro, obrigando os capitais a reinvestirem partes de
suas receitas na própria China, especialmente em pesquisa científica, limitando
o processo de transferência de valor e potencializando a acumulação em solo
chinês. Existe também uma obrigatoriedade de transferência de tecnologia, e o
PCCh tem, obrigatoriamente, seções em todas as empresas da China, onde os
membros do Partido exercem a fiscalização e o controle da execução das leis do
país[17].
Longe de um neoliberalismo que
derruba ao máximo as barreiras institucionais para a livre movimentação do
capital, a China é um dos países com maior regulamentação estatal do mundo. Mesmo
assim o capital estrangeiro continua tendo interesse em se deslocar para o
gigante asiático. Por quê?
Há a ideia equivocada de que foi o
grande afluxo de capital estrangeiro o responsável pelo boom do crescimento
chinês. Arrighi mostra que o boom está associado às reformas de Deng e ao
afluxo de capital da diáspora chinesa. A proximidade cultural, o domínio da
língua e as relações de parentesco entre os burgueses da diáspora e as
autoridades chinesas facilitaram essa rota de investimentos e potencializaram
uma ampliação da escala na acumulação de capital. Diante desse quadro,
tardiamente, os capitais dos EUA, Japão e Europa Ocidental passaram a fluir
para China em grandes levas a partir dos anos 90.
Em 1990, quando o investimento
japonês decolou, o investimento conjunto de 12 bilhões de dólares de Hong Kong
e Taiwan constituíam 75% de todo o investimento estrangeiro na China, quase 35
vezes a parte japonesa. E por mais que o investimento japonês tenha crescido a
partir daí, ele mais seguiu do que liderou o boom dos investimentos
estrangeiros na China. Quando a ascensão chinesa ganhou ímpeto próprio na
década de 1990, o capital japonês, norte-americano e europeu fluiu para a China
com mais intensidade ainda (...) em outras palavras, o capital estrangeiro
aproveitou o bonde de expansão econômica, que não foi ele que iniciou nem
liderou (ARRIGHI, 2008, p. 359)
4. O papel da revolução chinesa e do
maoísmo na ascensão econômica chinesa.
O mito de que foi o capital
estrangeiro o principal responsável pelo boom econômico na China caminha lado a
lado com a ideia de que foi o abandono total do que representou a revolução
chinesa e o maoísmo que permitiu a ascensão da China à condição de
superpotência mundial. A questão colocada dessa forma simplista está
equivocada, e a relação de continuidades e rupturas do maoísmo com a China
pós-Deng deve ser colocada num plano histórico de longa duração. Vejamos.
A China foi um dos países vítimas da
expansão colonial-imperialista das potências europeias no final do século XIX.
De país mais rico do mundo e liderança em termos de desenvolvimento cultural e
tecnológico, nos séculos XVII e XVIII, a China foi transformada no país mais
pobre do mundo, destruída, humilhada, e teve sua cultura nacional segregada a
tal ponto que existiam lugares na china colonizada onde eram proibidos a
entrada de “cães e chineses” – para o colonialismo-imperialista o “nativo” era
um ser inumano (LOSURDO, 2010).
A divisão imperialista do mundo e
sua consequente hierarquia racial passou a ser questionada com a Revolução de
Outubro. A Revolução Russa lançou um requisitório mundial para os povos dos
países coloniais e semicoloniais quebrarem suas correntes e lutarem,
decididamente, pela liberdade. Além do comprometimento do movimento comunista,
dirigido pela Terceira Internacional, no combate ao colonialismo e ao racismo,
o exemplo do desenvolvimento econômico soviético encantou o mundo. O país saiu
de uma situação de extrema miséria e atraso máximo (contando com relações de
servidão no campo) para ser a segunda superpotência do mundo, derrotar a
máquina de guerra nazista, vencer a corrida espacial contra os EUA e garantir
aos seus habitantes um dos melhores padrões de bem-estar social do mundo (HOBSBAWM,
1995; BRAZ, 2011).
De um ponto de vista ideológico e
prático, o movimento comunista oferecia uma teoria e estratégia de
desenvolvimento para os países colonizados que buscavam sua libertação, e para
os já libertos, que precisavam construir
os elementos de um Estado nacional e economias modernas, para garantir sua
emancipação econômica-política. Essa conjuntura provocou uma tendência vigente
durante grande parte do século XX de os movimentos anticoloniais e
nacionalistas manterem boas relações com os comunistas, ou serem dirigidos por
eles. Não é uma coincidência histórica que as maiores revoluções socialistas do
século XX tenham acontecido em países dependentes ou coloniais, onde a questão
da emancipação nacional tinha a primazia e o socialismo assumia a função de
garantir a soberania nacional – a revolução era realizada em nome da pátria e
do socialismo, e o socialismo era visto como a única forma de manter a soberania
e a integridade da pátria (VISENTINI, 2007).
O processo revolucionário chinês não
foi diferente. O nacionalismo, a noção de resgatar a soberania, a integridade e
a dignidade dessa milenar nação foi algo que acompanhou Mao Tse-Tung e os
revolucionários do PCCh desde o começo. O maoísmo nunca negou, inclusive, a
participação da burguesia nacional patriótica no esforço pelo renascimento da
China. O processo de revolução cultural é que foi uma exceção na história,
iniciada com a vitória da Revolução chinesa em 1949: a trajetória da revolução
chinesa é de um processo de emancipação nacional com forte conteúdo
socializante, dentro de uma frente policlassista, com suposta hegemonia dos
camponeses e proletários, materializados no domínio do poder político pelo
PCCh; a Revolução cultural chinesa, evento traumático e flagrantemente
derrotado, mas amado de maneira acrítica pelos intelectuais de esquerda
europeus – com destaque para os franceses –, representou a tentativa de romper
essa frente policlassista e transitar diretamente ao regime totalmente
socializante, retirando a centralidade da questão nacional.
As reformas de Deng e a continuidade
da estratégia do PCCh representavam a volta à centralidade da questão nacional
como norte de atuação, a redução brutal dos conteúdos socializantes do processo
revolucionário e um crescimento do papel da burguesia dita nacional no comando
político do país[18].
A perda de centralidade dos conteúdos socializantes é explicada pela dinâmica
interna da luta de classe do país e, principalmente, pela situação
internacional
No plano das relações
internacionais, não há dúvidas sobre o significado reacionário da virada que
ocorreu entre 1989 e 1991. E, exatamente em 1991, ano do colapso da URSS e da
primeira Guerra do Golfo, uma prestigiosa revista inglesa (International Affairs) publica no número de julho um artigo de
Barry G. Buzan que se concluía anunciando com entusiasmo a boa nova: “O
Ocidente triunfou tanto no comunismo como no terceiro-mundismo”. A segunda
vitória não era menos importante que o primeiro: “hoje o centro tem uma posição
mais dominante e a periferia uma posição mais subordinada desde o início da
descolonização”; podia-se considerar felizmente arquivado o capítulo da
história das revoluções anticoloniais (LOSURDO, 2015, p. 280).
Não há como negar a existência de perspectivas socializantes –
tendências essas que devem ser alvo de polêmica no próximo congresso do Partido
e, cada vez mais, se localizam na esfera da distribuição de riquezas, e não na
produção. É inegável também a desconfiança fundamental e, até mesmo, a repulsa
em deixar o desenvolvimento nacional nas mãos dos mecanismos de mercado –
leia-se monopólios do imperialismo e suas instituições de organização e
hegemonia, como o FMI e Banco Mundial –, que se manifesta através da manutenção
da planificação econômica, propriedade pública ainda proeminente dos meios de
produção, controle rígido dos “aparelhos privados de hegemonia” e do monopólio
do poder político pelo PCCh. Todos esses elementos são, sem dúvida,
continuidades das formas de transição socialista no século XX. O que é
central no caso chinês é o papel subordinado do conteúdo socializante e
o esvaziamento significativo das formas de poder popular, ou democracia
operária, dentro dessa estrutura.
A revolução chinesa garantiu a
soberania nacional e um patamar de base em termos de desenvolvimento econômico,
científico e social, de onde arrancou o boom chinês, a partir das reformas de
Deng. A China não está galgando o papel de superpotência dominante no mundo
porque renegou a revolução, mas sim porque fez a sua revolução
Remove-se, assim, o essencial: “as
conquistas sociais da era de Mao” consideradas num todo foram
“extraordinárias”: elas implicaram a nítida melhora das condições econômicas,
sociais, culturais e uma forte elevação da “expectativa de vida” do povo
chinês. Sem esses pressupostos, não se pode compreender o prodigioso
desenvolvimento econômico que sucessivamente libertou centenas de milhões de
pessoas da fome e até mesmo da morte por inanição (LOSURDO, 2015, p. 337).
E Arrighi (2008), citando um
relatório do Banco Mundial (instituição insuspeita de simpatias maoístas) diz
A realização mais notável da China
durante as últimas três décadas [dos anos 50 até os 80] foi a melhora das
condições de vida dos grupos de baixa renda em termos de necessidades básicas,
muito mais do que se deu com os grupos correspondentes da maioria dos outros
países pobres. Todos têm trabalho; o fornecimento de alimentos é assegurado por
meio de uma mistura de racionamento estatal com auto-seguro coletivo; as
crianças não só estão quase todas na escola como também são comparativamente
mais bem instruídas; e a grande maioria tem acesso a assistência médica básica
e serviços de planejamento familiar (ARRIGHI, 2008, p. 375).
5. As operações ideológicas ocidentais
Toda
informação emanada dos aparelhos ideológicos dos EUA procura ocultar
esses elementos do desenvolvimento chinês e combater o “consenso de Pequim”. As
operações ideológicas conseguem, inclusive, encobrir os elementos mais
gritantes da realidade. Vamos pegar um exemplo. O processo de privatização das
comunicações e telefonias pela periferia do capitalismo e o fim da URSS dotaram
o imperialismo estadunidense de uma capacidade única no mundo: controle e
vigilância. As redes sociais, elementos característicos do cotidiano no século
XXI, são, em sua quase totalidade, controlados por empresas dos EUA, e atuam em
associação orgânica com NSA, CIA e departamento de Estado dos EUA.
É mais que documentado,
especialmente depois das denúncias do ex-técnico da NSA, Edward Snowden, o
papel que esse controle das comunicações tem na atuação do imperialismo e na
derrubada de governos hostis a qualquer interesse dos EUA[19]. A
China desenvolve um sistema de comunicação – internet, redes sociais,
telefonia, comunicação por satélite etc. – próprio e mantém as transnacionais
dos EUA fora do controle desse setor da economia. Qualquer análise minimamente
séria deveria concluir que isso é uma grande conquista para a soberania
nacional chinesa, impede a ingerência dos EUA e é um objetivo a ser perseguido
por qualquer país que não queira ter sua segurança nacional ameaçada, mas a
propaganda massiva transforma esse ganho político fundamental em simples
censura e cerceamento da “liberdade de expressão” por parte do totalitário
Partido Comunista[20].
A propaganda imperialista ataca, sem
meias palavras, todos os elementos fundamentais da soberania nacional chinesa,
e transforma sua estratégia de desenvolvimento no seu contrário: o que
possibilitou a ascensão chinesa foi a negação total dos ditames neocoloniais do
“consenso de Washington” e da ideologia do livre-mercado; mas a China é mostrada
como o principal exemplo de ação descontrolada do capital sem regulação do
Estado.
O fato incontornável, porém, é que,
a despeito da ação imperialista, a estratégia do PCCh vem sendo vitoriosa em
todos os seus objetivos fundamentais. A Nova Rota da Seda, lançada pelo
presidente Xi Jinping,[21] obtendo
sucesso, irá reconfigurar de forma radical todo comércio e fluxo de capital
mundial e transformar a China no maior centro coordenador da acumulação de
capital do mundo, destruindo o que Losurdo (2015) chama de “era colombiana”: a
primazia da Europa e, posteriormente, dos EUA na economia mundial, com a
subjugação da Ásia, África e América Latina.
Quais
serão as consequências para a luta socialista e anti colonial dessa ascensão
chinesa? Há dificuldades em ver a ascensão chinesa como parte de uma estratégia
de transição socialista de longo prazo, e também não é crível a concepção da
sociedade chinesa como capitalista igual aos EUA ou Inglaterra. Contudo, uma
questão é certa e incontornável: depois do “fim da história”, assistimos ao que
promete ser um dos acontecimentos históricos de maior proporção no século XXI,
e, depois de séculos de humilhação colonial, o “dragão chinês” poderá voltar a
liderar o mundo.
Conclusão
Esperamos ter demonstrado, a partir
dessas linhas, que é impossível compreender a ascensão chinesa sem procurar
superar os mitos em que a propaganda imperialista envolve a história, a
política e a economia do país. Tal como na Guerra Fria, onde fatos históricos
manipulados, que beiravam o absurdo reinavam como verdades científicas inquestionáveis
– à exemplo da associação da União Soviética ao nazismo, ou de Hitler à Stálin,
através da categoria do totalitarismo –, com a China de hoje acontece o mesmo.
Existe um ditado que diz que “na
guerra, a primeira vítima é a verdade”. A guerra econômica, política e
ideológica (e possivelmente militar) contra a ascensão chinesa procura encobrir
que estamos diante de um país que, há menos de cem anos, era subdesenvolvido e
colonizado, e estava submetido ao mais bárbaro colonialismo. Esse país conseguiu
realizar sua revolução e consolidação como uma nação soberana, independente e
livre, conquistando melhorias incríveis nas condições socioeconômicas do seu
povo.
Esse mesmo país, numa era de
contrarrevolução mundial, com a derrota devastadora do movimento comunista e
anti colonial, conseguiu retirar mais de 700 milhões de pessoas da pobreza,
romper com o monopólio capitalista-ocidental da ciência e tecnologia de ponta e
tornar-se uma superpotência, abalando a divisão norte-sul.
A ideologia dominante, através dos
seus signos anti-China – como as já refutadas ideias do trabalho semi-escravo
universal ou o neoliberalismo chinês – conseguiu lograr um consenso na esquerda
Ocidental de que a China é um exemplo de triunfo do capitalismo mais bárbaro e
um exemplo da vitória do neoliberalismo adotado até por um “partido comunista”.
Não
é preciso crer na China como exemplo de transição socialista – coisa que não
endossamos – para perceber os erros desse tipo de análise. A China, quer se
revele plenamente capitalista no futuro, ou leve a cabo todos as promessas do
comunismo (o que duvidamos), deveria ser observada de forma mais complexa e
cautelosa. A história chinesa não cabe nos jargões prontos da propaganda
ideológica ocidental.
Referências.
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim – origens e
fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
ANDRÉANI, Tony; HERRERA, Rémy. Qual modelo econômico para a China?.
Rio de Janeiro: Revista Niep-Marx, 2016.
AMIN, Samir. China 2013. Disponível em:
<https://www.novacultura.info/single-post/2015/08/11/China-2013>.Acesso em 19 jan, 2017.
BRAZ, Marcelo. Partido e Revolução 1848-1989. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Cia das
letras, 1995.
LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e
filosófica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
_________________ Fuga da história? A revolução russa e
chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.
__________________ Stálin – história crítica de uma lenda
negra. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010.
NAVES, Márcio Bilharinho. Mao – o processo da revolução. São
Paulo: Editora Brasiliense, 2005.
TROTSKY, Leon. A revolução traída. São Paulo: Global Editora, 1980.
MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura
na Teoria Marxista. Rio de Janeiro: Editora Gramma, 2014.
VISENTINI, Paulo Fagundes. A revolução vietnamita. São Paulo: Editora Unesp, 2007
[1] O papel da China na campanha presidencial
estadunidense de 2016 deixa explícita a histeria sinofóbica que existe no establishment político dos EUA.
Consultar matéria da BBC de Londres sobre o tema (acessado em 20/01/2017):
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-38649836
[2] “Economia Chinesa abala o mundo”, Carta
Capital, acessado em 21/01/2017: http://www.cartacapital.com.br/revista/864/o-tropeco-de-godzilla-4333.html
[3] China terá o maior mercado consumidor do mundo,
Folha de São Paulo. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/2/26/brasil/3.html>. Acesso em 20 jan, 2017.
[4] A internet está inundada com artigos, matérias
jornalísticas, documentários etc. sobre o trabalho escravo na China. É mais
fácil, inclusive, achar material jornalístico em português sobre trabalho
escravo no dragão asiático que no Brasil. Segue alguns exemplos: Escândalo de
trabalho escravo estoura na China, World Socialist, Acessado em 20/01/2017: https://www.wsws.org/pt/2007/jun2007/chpo-j28.shtml
/ O trabalho escravo na China, Jornal GGN,
acessado em 20/01/2017: http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/o-trabalho-escravo-na-china
/ Câmera escondida revela abuso contra empregados
em fabricante da Apple na China, BBC, Acessado em 20/01/2017:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/12/141219_apple_fabrica_china_pai
[5] David Harvey, em seu Brief History Of
Neoliberalism, fala em “neoliberalismo com características chinesas”, e na
edição inglesa coloca na capa Deng Xiaoping ao lado de Reagan, Pinochet e
Thatcher; Peter Kwong também fala em neoliberalismo chinês, e afirma que Reagan
e Deng tinham Milton Friedman como gurus. Outros exemplos dessas análises do
“neoliberalismo chinês” podem ser vistos em (ARRIGHI, 2008, p. 359-60).
[6] “Na outra ponta do espectro ideológico, os
promotores institucionais do consenso de Washington – o Banco Mundial, o FMI, o
Tesouro dos Estados Unidos e do Reino Unido, apoiados pela mídia formadora de
opinião, como o Financial Times e o Economist – proclamaram que a redução da
pobreza e desigualdade de renda no mundo, que acompanhou o crescimento
econômica da China desde 1980, pode ser atribuída ao fato de os chineses terem
adotado a política que eles receitavam” (ARRIGHI, 2008, p. 360).
[7] O debate sobre a ascensão chinesa e o maoísmo
pode ser encontrado em (LOSURDO, 2015; 2004) e (NAVES, 2005).
[8] Como defende o polêmico livro francês de Mylène
Gaulard, Karl Marx à Pekin – Les Racines de la Crise en Chine Capitaliste, Editions Demopolis, Paris, 2014.
[9] “The
Economist em 4 de Março: “Desde 2001, o pagamento pela hora trabalhada nas fábricas
aumentou na média de 12 por cento ao ano.” Imagine se os trabalhadores daqui
[Estados Unidos] estivessem ganhando aumento de 12% todo ano nos últimos 15
anos! Mesmo com contratos negociados através dos sindicatos, o aumento de
salários nos Estados Unidos quase não acompanhou o ritmo da inflação.Na seção
de tecnologia da revista New York Times de 24 de Abril: “Ondas de trabalhadores
que migraram do campo tem preenchido as fábricas chinesas pelas últimas três
décadas e a ajudaram a tornar a maior nação produtora do mundo, Mas muitas
empresas agora se encontram na luta para contratar um número suficiente de
trabalhadores. E para os poucos trabalhadores que encontram, a remuneração mais
do que quintuplicou na última década, para mais de $500 por mês em províncias
costeiras.”” – China, aumento de salário e militância operária, Revista Nova
Cultura, acessado em 19/01/2017.
[10] “Entre
a tomada do poder, em 1949, e a chegada de Deng Xiaoping, em 1978, foram
construídas umas 100 cidades. Esse ritmo se acelerou com a reforma econômica
dos Anos 80, e alcançou seu ritmo atual com a urbanização nacional do começo
deste século, o que já resultou numa mudança demográfica sem precedentes: pela
primeira vez, em sua história milenária, existem mais chineses morando nos
centros urbanos que no campo.O último plano de urbanização nacional, que foi
iniciado em 2014 e deveria ser concluído em 2020, foi anunciado em março do ano
passado, com um custo de 7 trilhões de dólares – quase a metade do PIB dos
Estados Unidos. O plano forma parte da transição chinesa, de uma economia
baseada nas exportações a outra mais centrada no consumo, e que constitui uma
fonte de demanda para a economia global, devido às necessidades de
matérias-primas e produtos elaborados implícitas em qualquer programa
urbanizador” – O mito das cidades fantasmas chinesas, Carta Maior, acessado em
19/01/2017.
[11] Michael Roberts, em seu China
a weird beast, debate essa mudança na economia chinesa: acessado em 10/01/2017:
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/09/17/china-a-weird-beast/
[12] China melhora sistema de
previdência social, Vermelho.org, acessado em 20/01/2017:
http://www.vermelho.org.br/noticia/256003-1
[13] Cumpre
destacar um elemento curioso desse modelo de transição chinês para um
crescimento com centralidade no mercado interno e consumo. Os modelos de
desenvolvimento intenso tendem a ter taxas de crescimento maiores que as fases
de desenvolvimento extensivos. A redução das taxas de crescimento chinês nos
últimos anos, que oscilaram de uma média de 10% para 7%, estavam totalmente
previstas nos planos quinquenais do PCCh, porém, para muitos intelectuais,
esses taxas menores são a prova da lei marxista da queda tendencial da taxa de
lucro e, há anos, é profetizada uma eminente crise capitalista de
superacumulação na China. A análise das contratendências que até agora evitaram
o estouro dessa crise sempre imanente nunca comparecem com destaque. Esse
catastrofismo economicista pode ser criticado com a mesma lógica que Gramsci
utilizou para criticar a teoria da revolução permanente de Trotsky: “Bronstein
[Trotsky] recorda nas suas memórias terem-lhe dito que sua teoria [da revolução
permanente] se revelaria boa em quinze anos... depois, e responde ao epigrama
com outro epigrama. Na realidade, a sua teoria, como tal, não era boa nem
quinze anos antes, nem quinze anos depois: como sucede com os obstinados, dos
quais fala Guiacciardini, ele adivinhou em grosso, teve razão na previsão
prática mais geral; da mesma forma que se prevê que uma menina de quatro anos
se tornará mãe, e quando isso ocorre, vinte anos depois, se diz ‘adivinhei’, esquecendo
porém que quando a menina tinha quatro anos tentara estuprá-la, certo de que se
tornaria mãe” (GRAMSCI apud MOTTA, 2014, p. 36).
[14] “Além disso, a separação capital/trabalho pode
ser, e é frequentemente, muito relativo no contexto chinês. Veremos como ela é
limitada no curso das empresas públicas – o que impede de considerá-las
simplesmente como uma forma de capitalismo de Estado – e que ela é o ainda mais
na economia “coletiva”, onde os trabalhadores participavam na propriedade do
capital, ou têm propriedade plena – como as cooperativas (por ações ou não) ou
nas comunas populares mantidas. Claro está que, nos últimos casos, a
propriedade fica mais ou menos ‘separada’ da gestão (...) A ‘superioridade’ das
empresas públicas chinesas é a participação (limitada, mas real) do pessoal
[força de trabalho] na gestão das unidades, via representantes no Conselho de
Supervisão e no Congresso de trabalhadores” (ANDRÉANI e HERRERA, 2016,
p.15-25).
[15] Um
exemplo significativo de como o Estado chinês atua frente ao capital
estrangeiro na absorção de tecnologia: “assim, no início da década de 1990,
informou sem muita cerimônia à Toshiba e a outras grandes empresas japonesas
que, a menos que levassem consigo os fabricantes de peças, não precisavam nem
se incomodar em mudar para seu país. Mais recentemente, as empresas
automobilísticas chinesas conseguiram a proeza de realizar joint ventures
simultâneas com empresas estrangeiras rivais, como, por exemplo, a Guangzhou
Automotive com a Honda e a Toyota, algo que esta última sempre se recusou a
fazer. Esse acordo permitiu ao parceiro chinês aprender as melhoras práticas de
ambos os concorrentes e ser o único, na rede tripartite, a ter acesso aos
outros dois” (ARRIGHI, 2008, p. 361).
[16] “É difícil precisar quanto da economia é
estatal. Zhinwu Chen, professor de Yale, avalia que 75% da riqueza está nas
mãos do Estado [1], e o Banco Central Europeu diz que a economia hoje é
mais estatizada que no começo da crise de 2007/2008” – Uma viagem instrutiva à
China: reflexões de um filósofo, Diário.Info, acessado em 18/01/2017; “O Estado
mantém a Comissão de Administração e Supervisão do Patrimônio Estatal,
responsável por fiscalizar e manter controle políticos sobre as empresas” –
China’s economic growth and rebalancing, acessado em 18/01/2017.
[17] O
filósofo e estudioso da China Domenico Losurdo (2015) chega a afirmar que o
domínio do PCCh na vida econômica chinesa é algo “evidente” e “incontestável”
na realidade do país (p.324).
[18] Os
três autores que usamos como referência para nosso estudo: Giovanni Arrighi,
Samir Amin e Domenico Losurdo não conseguem explicar de forma satisfatória a
relação atual da burguesia chinesa com o poder político. Losurdo e Arrighi, nas
obras já citadas, afirmam que a burguesia não é classe dominante, embora seja
permitida sua adesão ao PCCh e seu crescimento qualitativo seja evidente, e
Amin, em seu artigo “China 2013”, não entra diretamente na questão, mas,
implicitamente, parece compartilhar da visão dos dois pensadores italianos. A
questão central que nos parece faltar é explicar, em detalhes, os mecanismos
que o PCCh usa para anular a transformação do poder econômico da burguesia em
poder político e ideológico (se a burguesia realmente não for a classe
dominante) e a que classe, classes e/ou fração de classes o PCCh responde hoje.
[19] Moniz
Bandeira: "Os EUA aspiram a uma ditadura mundial do capital financeiro”,
Carta Capital, acessado em 19/01/2017:
http://www.cartacapital.com.br/revista/933/moniz-bandeira-os-eua-aspiram-uma-ditadura-mundial-do-capital-financeiro.
[20] Domenico Losurdo sintetiza esses elementos do
ataque da ideologia dominante à China no seu artigo de 2007, onde debate a
proposta de boicote às Olimpíadas de Pequim (acessado em 18/01/2017):
http://www.vermelho.org.br/noticia/28556-1
[21] “A Iniciativa OBOR (One Belt, One Road), também
conhecida como Nova Rota da Seda, foi divulgada no segundo semestre de 2013
pelo presidente chinês Xi Jinping. Trata-se do mais ambicioso projeto chinês
para alavancar sua inserção internacional. Como destaca Yiwei (2016), este
projeto oferece alternativas ao estilo de globalização conduzida pelos EUA
considerada por ele insustentável" – O papel da África na nova rota da
seda marítima, Resistência, acessado em 18/01/2017: http://www.resistencia.cc/o-papel-da-africa-na-nova-rota-da-seda-maritima/