O anticomunismo de esquerda*
Nos Estados Unidos, por
centenas de anos, os interesses predominantemente incansáveis propagaram o
anticomunismo entre a população, até se tornar algo como uma ortodoxia
religiosa, em vez de uma análise política. Durante a Guerra Fria, a moldura
ideológica anticomunista podia transformar quaisquer dados sobre sociedades
comunistas existentes em evidências hostis.
Desfile na URSS. |
Se
os soviéticos se recusassem a negociar um ponto, eles eram intransigentes e
beligerantes; se eles pareciam fazer concessões, isso era um artifício para
baixarmos a guarda. Se se opunham à limitação das armas, eles estariam
demonstrando seu intuito agressivo; mas quando de fato apoiavam mais tratados
sobre armamentos, então é por que eram espertos e manipuladores. Se as igrejas
na URSS estavam vazias, isso demonstrava que a religião era suprimida; mas se
as igrejas estavam cheias, isso quer dizer que o povo estava rejeitando a
ideologia ateia do regime. Se os trabalhadores entravam em greve (como ocorria
em ocasiões não frequentes), isso era evidência de sua alienação do sistema
coletivista; se eles não faziam greve, isso é por que eles eram intimidados e
não tinham liberdade. A escassez de bens de consumo demonstrava uma falha no
sistema econômico; uma melhora nos suprimentos de consumo significava que os
líderes estavam tentando acalmar uma população inquieta e assim manter firme
controle sobre ela. Se os comunistas nos Estados Unidos desempenhavam papel
importante lutando pelos direitos dos trabalhadores, dos pobres,
afroamericanos, mulheres e outros, isso era apenas uma forma útil de ganhar
apoio entre grupos não representados e ganhar poder para eles mesmos. Como
alguém ganhava poder lutando por direitos de grupos sem poder nunca foi
explicado. O que estamos abordando é uma ortodoxia não-disfarçada, tão
assiduamente distribuída pelos interesses dominantes que afetou o povo ao longo
do total espectro político.
- Genuflexão
à ortodoxia
Muitos
na esquerda dos EUA apresentaram ataques contra os soviéticos e contra os
vermelhos comparável à hostilidade e crueza da direita. Ouça Noam Chomsky
pregando sobre os “intelectuais de esquerda” que tentam “erguer o poder nas
costas dos movimentos populares de massa” e “então tornam o povo submisso...
Você começa basicamente como um leninista que será parte da burocracia
vermelha. Você vê depois que o poder não segue aquele caminho, e você
rapidamente torna-se um ideólogo da direita... Nós vemos isso agora na (antiga)
União Soviética. Os mesmos caras que eram capangas comunistas dois anos atrás
estão agora dirigindo bancos e (são) entusiastas do livre mercado que louvam os
americanos” (Z Magazine, 10/95).
O
imaginário de Chomsky é altamente devido à mesma cultura política corporativa
que ele critica tão frequentemente em outras questões. Em sua mente, a
revolução foi traída por uma camarilha de “capangas comunistas” que meramente
tem fome de poder em vez de querer o poder para acabar com a fome. De fato, os
comunistas não mudaram “rapidamente” para a direita, mas lutaram em face a um
momento de investida para manter o socialismo soviético vivo por mais de
setenta anos. Precisamente, nos últimos dias da União Soviética alguns, como
Boris Yeltsin, cruzaram as fileiras capitalistas, mas outros continuaram a
resistir às incursões do mercado livre a um grande custo para eles mesmos,
muitos conhecendo a morte durante a violenta repressão de Yeltsin contra o
parlamento russo em 1993.
Alguns
de esquerda e outros caem no velho estereótipo de vermelhos sedentos de poder
que tomam o poder pelo poder sem qualquer preocupação com verdadeiras metas
sociais. Se é verdade, alguém se impressionaria com o fato de que, em país após
país, esses vermelhos colocam-se ao lado dos pobres e impotentes,
frequentemente sob o grande risco de sacrificar a si próprios, em vez de buscar
recompensas que vem a servir os de boa posição.
Por
décadas, muitos autores de esquerda e porta-vozes nos Estados Unidos
sentiram-se obrigados a estabelecer sua credibilidade com indulgências à
genuflexão anticomunista e antissoviética, parecendo ser incapazes de fazer um
discurso ou escrever um artigo ou livro revendo qualquer tema político sem
injetar alguma dose antivermelha. O intento era e ainda é, distanciar-se eles
mesmos da esquerda marxista-leninista.
- Adam
Hochschild: Mantendo sua distância da “esquerda stalinista” e recomendando a
mesma postura para progressistas.
Adam
Hochshild, um escritor liberal e editor, alertou aqueles indiferentes à
condenação das sociedades comunistas existentes, dizendo que eles “enfraquecem
sua credibilidade” (Guardian, 23/5/84). Em outras palavras, para ser oponentes
da guerra fria de credibilidade, tínhamos que primeiro juntar-se à Guerra Fria
na condenação de sociedades comunistas. Ronald Radosh alertou que o movimento
pela paz expurga a si mesmo de comunistas, então eles não podem ser acusados de
serem comunistas (Guardian, 16/03/83). Se eu entendo Radosh: para salvar a nós
mesmos da caça às bruxas anticomunistas, nós mesmos devemos nos tornar
caçadores de bruxas. Expurgar a esquerda de comunistas tornou-se uma prática de
longa data, tendo efeitos injuriosos em várias causas progressivas. For
exemplo, em 1949, umas dúzias de sindicatos foram retirados do CIO (Congresso
das Organizações Industriais) por que tinham vermelhos em sua liderança. O expurgo
reduziu o número de membros da CIO em cerca de 1.7 milhões e seriamente
enfraqueceu seus mecanismos de recrutamento e foco político. Em meados dos anos
40, para evitar ficar “queimados” como vermelhos, os Americanos pela Ação
Democrática (ADA), grupo supostamente progressista, tornou-se uma das mais
vocais organizações anticomunistas.
A
estratégia não funcionou. A ADA e outros à esquerda ainda foram atacados por
serem comunistas ou brandos com o comunismo por aqueles à direita. Então e
agora, muitos à esquerda falharam em perceber que aqueles que lutam por
mudanças sociais em prol dos elementos menos privilegiados da sociedade serão
atacados pelas elites conservadoras como vermelhos, sejam eles comunistas ou
não. Para os interesses dominantes, há pouca diferença se sua riqueza e poder é
desafiada por “subversivos comunistas” ou “leais liberais americanos”. Todos
são compilados como mais ou menos repugnantes.
Um
prototípico espanca-vermelhos que pretendia estar na esquerda foi George
Orwell. Em meio à II Guerra Mundial, enquanto a União Soviética lutava por sua
vida contra os invasores nazistas em Stalingrado, Orwell anunciou que uma “uma
vontade de criticar a Rússia e Stalin são testes de honestidade intelectual.
São as únicas coisas que do ponto de vista de um intelectual literário são
realmente perigosas” Monthly Review, 5/83. Seguramente abrigado dentro de uma
sociedade virulentamente anticomunista, Orwell (com seu pensamento dúbio
orweliano) caracterizou a condenação do comunismo como um ato de desafio
solitário. Hoje, sua progenitura ideológica ainda persiste, oferecendo uma
crítica intrépida de esquerda da esquerda, promovendo uma valente luta contra
imaginárias hordas marxistas-leninistas-stalinistas.
Está
em falta na esquerda dos EUA uma avaliação racional da União Soviética, uma
nação que enfrentou uma dura guerra civil e uma invasão estrangeira
multinacional nos seus primeiros anos de existência, e duas décadas depois
expulsou e destruiu as bestas nazistas com um enorme custo para ela mesma. Três
décadas após a revolução bolchevique, os soviéticos conseguiram avanços
industriais como aqueles que no capitalismo levaram um século para alcançar –
enquanto alimentava e dava escolas às suas crianças em vez de fazê-las
trabalhar quatorze horas por dia como fizeram os industrialistas capitalistas e
ainda fazem em várias partes do mundo. E na União Soviética, bem como na
Bulgária, República Democrática Alemã e Cuba foi oferecida assistência vital
aos movimentos de libertação nacional nos países ao redor do mundo, incluindo o
Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela, na África do Sul.
Os
anticomunistas de esquerda não ficaram nenhum pouco impressionados pelos
dramáticos ganhos das massas populares, previamente empobrecidas, sob o
comunismo. Alguns mesmo menosprezaram tais realizações. Eu me recordo como em
Burlington Vermont, em 1971, o notável anticomunista anarquista, Murray
Bookchin, desdenhosamente se referia às minhas preocupações pelas “pobres crianças
que eram alimentadas sob o comunismo” (palavras dele).
- Pregando
as etiquetas
Aqueles
que se recusaram a se juntar aos ataques contra os soviéticos eram taxados
pelos anticomunistas de esquerda como “apologistas de soviéticos” e
“stalinistas”, mesmo que desaprovássemos Stalin e seu sistema autocrático de
governo e acreditássemos que havia coisas seriamente erradas dentro da
sociedade soviética existente. Nosso verdadeiro pecado é que diferentemente de
muitos na esquerda, nós nos recusávamos a engolir de forma acrítica a
propaganda da mídia dos EUA sobre as sociedades comunistas. Em vez disso, nós
sustentávamos que, à parte algumas deficiências e injustiças bem conhecidas,
havia características positivas no sistema comunista dignas de preservação, que
melhoraram as vidas de centenas de milhões de pessoas de modo significativo e
humanitário. Este clamor tinha um efeito desconcertante para os anticomunistas
de esquerda, que não podiam dizer uma só palavra positiva sobre qualquer
sociedade comunista (exceto Cuba, possivelmente) e não podiam ter ouvidos
tolerantes ou mesmo corteses para qualquer um que o fizesse.
Saturados
pela ortodoxia anticomunista, a maioria dos esquerdistas dos EUA tem praticado
um mccarthismo de esquerda contra pessoas que tinham algo de positivo para
dizer sobre o comunismo existente, excluindo-os da participação em
conferências, conselhos consultivos, endossos políticos e publicações de
esquerda. Tal como os conservadores, os anticomunistas de esquerda toleram
apenas uma condenação vazia da União Soviética como uma monstruosidade
stalinista e como uma aberração moral leninista.
O
fato de muitos esquerdistas dos EUA terem pouca familiaridade com os escritos
de Lenin e seu trabalho político não os impede de serem taxados de
“leninistas”. Noam Chomsky, que é um apreciador incansável de caricaturas
anticomunistas, oferece este comentários sobre o leninismo: “os intelectuais
ocidentais e do Terceiro Mundo eram atraídos pela contrarrevolução bolchevique (sic)
por que o leninismo é, depois de tudo, uma doutrina que diz que a
intelligentsia radical tem o direito de tomar o poder do Estado para dirigir os
países pela força e isso torna essa ideia atraente para os intelectuais”. Aqui
Chomsky reproduz a imagem de intelectuais sedentos de poder junto com a sua
caricatura de leninistas sedentos de poder, vilões buscando não meios
revolucionários de combater a injustiça, mas poder pela sede de poder. Quando
se trata de espancar os vermelhos, alguns dos melhores e mais brilhantes na
esquerda não soam melhor do que os piores na direita.
Quando
em 1996 houve um atentado a bomba na cidade Oklahoma, eu ouvi um comentarista
de rádio anunciar: “Lenin disse que o propósito do terror é aterrorizar”. Os
comentaristas da mídia dos EUA repetidamente citaram Lenin de forma errônea. De
fato, sua declaração desaprovava o terrorismo. Ele polemizou contra atos
isolados de terrorismo que nada fazem senão criar o terror entre a população,
convidar a repressão e isolar o movimento revolucionário das massas. Longe de
ser um conspirador totalitário, conspirador de curtos círculos, Lenin urgia
pela construção de largas coalizões e organizações de massa, congregando
pessoas de diferentes níveis de desenvolvimento político. Ele advogou diversos
meios necessários para avançar a luta de classes, incluindo a participação nas
eleições parlamentares e nos sindicatos existentes. Para ser exato, a classe
trabalhadora, como qualquer grupo de massa, necessitava de organização e
liderança para levar adiante a luta revolucionária, que era o partido de
vanguarda, mas isso não significava que a revolução proletária podia ser
promovida e vencida por golpistas ou terroristas.
Lenin
constantemente lidava com o problema de evitar dois extremos, o oportunismo
burguês liberal e o aventureirismo de ultraesquerda. Ainda, ele próprio era
identificado como um golpista de ultraesquerda pelos jornalistas do mainstream e
por alguns da esquerda. Se a postura de Lenin quanto à revolução é desejável ou
mesmo relevante hoje é uma questão que exige uma análise crítica. Mas uma
avaliação útil não pode vir de pessoas que distorcem a sua teoria e prática.
Os
anticomunistas de esquerda encontram qualquer associação com organizações
comunistas como moralmente inaceitável por causa dos “crimes do comunismo”.
Ainda, muitos deles encontram-se associados com o Partido Democrático em seu
país, seja como eleitores ou membros, parecendo ser indiferentes aos crimes
políticos inaceitáveis cometido pelos líderes daquela organização. Sob uma ou
outra administração democrata, 120 mil nipo-americanos foram retirados de suas
casas e habitações e lançados em campos de detenção; bombas atômicas foram
lançadas em Hiroshima e Nagasaki com uma enorme perda de vidas inocentes; ao
FBI foi dada a autoridade para se infiltrar em grupos políticos; o Ato Smith
foi usado para prender líderes do Partido Socialista dos Trabalhadores
trotskista e depois os do Partido Comunista por suas crenças políticas; campos
de detenção foram estabelecidos para receber dissidentes políticos em evento de
“emergência nacional”; durante os anos 40 e 50, oito mil trabalhadores federais
foram expurgados do governo por causa de suas associações políticas e visões,
com centenas dele tendo carreiras arruinadas com a caça às bruxas; o Ato de
Neutralidade foi usado para impor um embargo à República Espanhola, agindo em
favor das legiões fascistas de Franco; programas de contra-insurgência homicida
foram iniciados em vários países do Terceiro Mundo; e a guerra do Vietnã foi
intensificada e continuada. E para a melhor parte do século, a Liderança
Congressional do Partido Democrata protegeu a segregação racial e vetaram todas
as emendas contra o linchamento e de pleno emprego. Mesmo assim, todos esses
crimes, trazendo a ruína e morte de muitos, não tem comovido os liberais, os
sociais-democratas, e os “socialistas democráticos” anticomunistas para
insistir repetidamente que se trata de condenações vagas do Partido Democrata
ou do sistema político que o produziu, certamente não com o fervor intolerante
que tem sido dirigido contra o comunismo existente.
- Socialismo
puro vs. Socialismo de cerco
Os
eventos na Europa Oriental não constituem uma derrota para o socialismo por que
o socialismo nunca existiu naqueles países, de acordo com alguns esquerdistas
dos EUA. Eles dizem que os Estados comunistas ofereceram nada mais do que um
sistema burocrático, “capitalismo de Estado” unipartidário e algo do tipo.
Chamarmos os antigos países comunistas de “socialistas” é uma questão de
definição. Suficiente para dizer, eles constituíram algo diferente do que
existiu no sistema capitalista movido pelo lucro que os capitalistas não
tardaram a reconhecer.
Primeiro,
nos países comunistas, havia menos desigualdade econômica do que sob o
capitalismo. Os benefícios desfrutados pelas elites do partido e do governo
eram modestas em comparação com os padrões de um diretor executivo de uma
grande empresa no ocidente (mesmo quando comparados com as compensações
grotescas para as elites financeiras e executivas – edição), bem como para com
sua renda pessoal e estilo de vida. Líderes soviéticos como Yuri Andropov e
Leonid Brejnyev não viviam em mansões reservadas como na Casa Branca, mas em
apartamentos relativamente largos em projetos habitacionais próximos ao
Kremlin, designado para líderes governamentais. Eles tinham limusines à sua
disposição (como a maioria dos chefes de Estado) e acesso a largas dachas onde
eles recebiam visitantes dignatários. Mas eles não tinham essa imensa riqueza
pessoal que a maioria dos líderes dos EUA possuem.
A
“vida luxuosa” desfrutada pelos líderes partidários da Alemanha Oriental, como
bem publicado na imprensa dos EUA, incluía um subsídio de 725 dólares em
divisas, e direito a um assentamento exclusivo nos arredores de Berlim que
incluíam uma sauna, uma piscina coberta e um centro de fitness compartilhado
por outros residentes. Eles também podiam comprar em lojas abastecidas com bens
ocidentais como bananas, jeans e eletrônicos japoneses. A imprensa dos EUA
nunca apontou que os cidadãos alemães orientais comuns tinham acesso a piscinas
públicas e ginásios e mesmo podiam comprar jeans e eletrônicos(embora não a
variedade importada). Nem era o “luxuoso” consumo desfrutado pelos líderes
alemães contrastados como o verdadeiramente opulento estilo de vida da
plutocracia ocidental.
Segundo,
nos países comunistas, as forças produtivas não eram organizados para ganho de
capital e enriquecimento privado; a propriedade pública dos meios de produção
suplantaram a propriedade privada. Indivíduos não podiam contratar outras
pessoas e acumular grandes riquezas pessoais de seu trabalho. Novamente,
comparado com os padrões ocidentais, a diferença nos ganhos e economias entre a
população eram geralmente modestos. A renda entre os maiores e menores
assalariados na União Soviética era de cinco para uma. Nos Estados Unidos, a
renda média entre os maiores multibilionários e os pobres trabalhadores é de
10.000 para 1.
Terceiro,
a prioridade era colocada sobre os serviços humanos. Embora a vida sob o
comunismo deixou muito a desejar e os serviços eram raramente os melhores, os
países comunistas garantiram aos seus cidadãos o mínimo padrão de sobrevivência
e seguridade econômica, incluindo educação garantida, emprego, habitação e
assistência médica.
Quarto,
os países comunistas não visavam a penetração do capital de outros países.
Carecendo de uma motivação de lucro como sua força motor e assim não tendo a
constante necessidade de encontrar novas oportunidades de investimentos, eles
não expropriaram as terras, o trabalho, os mercados e recursos naturais de
nações mais fracas, isto é, não praticaram o imperialismo econômico. A União
Soviética conduziu o comércio e relações de ajuda em termos geralmente
favoráveis às nações do Leste Europeu e Mongólia, Cuba e Índia.
Tudo
acima fez parte dos princípios organizacionais de cada sistema comunista num ou
outro degrau. Nenhum deles se aplica a países de livre mercado como Honduras,
Guatemala, Tailândia, Coréia do Sul, Chile, Indonésia, Zaire, Alemanha ou
Estados Unidos.
Mas
um verdadeiro socialismo, argumenta-se, seria controlado pelos próprios
operários através de participação direta, em vez de ser dirigido por
leninistas, estalinistas, castristas, ou outros patologicamente sedentos de
poder, burocráticos, homens cabalmente maus que traem revoluções. Infelizmente,
esse “socialismo puro” é uma figura não-histórica e não-falsificada; ela não
pode ser posta a prova contra as atualidades da história. Ela compara um ideal
com uma realidade imperfeita, e a realidade vem num mísero segundo. Ela imagina
o que o socialismo poderia ter sido num mundo bem melhor do que este, onde não
há fortes estruturas de Estado ou força de segurança é requerida, onde nenhum
dos valores produzidos pelos trabalhadores precisa ser expropriado para
reconstruir a sociedade e defendê-la da invasão externa e sabotagem interna.
As
antecipações ideológicas dos socialistas puros tão intangíveis na prática. Elas
não explicam como desdobramentos de uma sociedade revolucionária seriam
organizadas, como ataques externos e sabotagem interna seria combatida, como a
burocracia seria evitada, recursos escassos alocados, diferenças políticas
abordadas, prioridades estabelecidas, e produção e distribuição conduzidas. Em
vez disso, eles oferecem vagas declarações sobre como os trabalhadores iriam
diretamente possuir e controlar os meios de produção e chegariam em suas
próprias soluções através de uma luta criativa. Não é nenhuma surpresa que os
socialistas puros apoiam cada revolução, exceto as que tiveram sucesso.
Os
socialistas puros tem uma visão de uma nova sociedade que criaria e seria criada
por novas pessoas, uma sociedade tão transformada em seus fundamentos que
deixaria pouco espaço para erros, corrupção e abusos criminosos do poder do
Estado. Não haveria burocracia ou oportunistas interesseiros, nenhum conflito
rude ou decisões dolorosas. Quando a realidade prova ser diferente e mais
difícil, alguns na esquerda procedem em sua condenação do real e anunciam que
“sentem-se traídos” por esta ou aquela revolução.
Os
socialistas puros veem o socialismo como um ideal que foi manchado pela
venalidade, duplicidade e sede de poder dos comunistas. Os socialistas puros
opõem-se ao modelo soviético, mas oferecem poucas evidências para demonstrar
que outros caminhos poderiam ter sido adotados, que outros modelos de
socialismo – não o criado pela imaginação de alguém, mas desenvolvido sob a
experiência histórica – poderia ter se firmado e funcionado melhor. Era
possível um socialismo aberto, plural e democrático possível sob esta
conjuntura histórica? A evidência histórica sugere que não. Como sustentou o
filósofo político Carl Shames:
Como (os críticos de
esquerda) sabem que o problema fundamental era a “natureza” dos partidos (revolucionários)
governantes em vez de dizer que a concentração global do capital está
destruindo todas as economias independentes e colocam um fim à soberania
nacional em todo lugar? E nesse plano, de onde veio essa “natureza”? Essa
“natureza” estava desconcertada, desconectada da própria sociedade em si, das
relações sociais impactantes? (…) Centenas de exemplos nos quais a
centralização do poder foi uma escolha necessária podem ser encontrados para
proteger e assegurar as relações socialistas. Em minha observação (das
sociedades comunistas existentes), o lado positivo do “socialismo” e a negação
da “burocracia, autoritarismo e tirania” faziam parte de cada esfera da vida”
(Carl Shames, correspondência a mim, 15/01/92)
Os
socialistas puros regularmente acusam a própria esquerda da derrota que sofrem.
Os seus achismos são infindáveis. Então ouvimos dizer que lutas revolucionárias
falham por que seus líderes esperam demais para agir ou agem cedo demais, são
tímidos demais ou impulsivos demais, muito teimosos ou facilmente
influenciáveis. Ouvimos dizer que líderes revolucionários são comprometedores
ou aventureiros, burocráticos ou oportunistas, rigidamente organizados ou
insuficientemente organizados, não democráticos ou falham para oferecer forte
liderança. Mas sempre os líderes falham por que eles não aceleram as “ações
diretas” dos trabalhadores, que aparentemente iriam contornar e resolver cada
adversidade se lhes fosse dado algum tipo de liderança disponível nos grupelhos
dos críticos de esquerda. Infelizmente, os críticos parecem inaptos para
aplicar seu próprio gênio de liderança para produzir um movimento revolucionário
de sucesso em seu próprio país.
- Tony
Febbo questiona essa síndrome de “culpar a liderança” dos socialistas puros
“Parece-me
que quando pessoas tão inteligentes, diferentes, dedicadas e heroicas como
Lenin, Mao, Fidel castro, Daniel Ortega, Ho Chi Minh e Robert Mugabe – e
milhões de pessoas heroicas que os seguiram e com eles lutaram – tudo termina
mais ou menos no mesmo lugar, então algo maior está funcionando do que quem
toma as decisões ou em qual encontro. Ou mesmo do que o tamanho das casas para
as quais eles vão após o encontro...
Esses
líderes não estavam no vácuo. Eles estavam em um tornado. E tal sucção, a
força, o poder que girava em torno deles deixou esse mundo mutilado por mais de
900 anos. E culpar esta ou aquela teoria, ou este ou aquele líder é um
substituto simplista para o tipo de análise que os marxistas(deveriam fazer).”
(Guardian, 13/11/91)
Para
ser exato, os socialistas puros não são inteiramente diferentes sem agendas
específicas para construir a revolução. Depois que os sandinistas derrubaram a
ditadura de Somoza na Nicarágua, um grupo de ultra-esquerda no país clamava por
uma propriedade das fábricas feita diretamente pelos trabalhadores. Os
operários armados tomariam o controle da produção sem benefício de diretores, planejadores
estatais, burocratas ou forças armadas formais. Enquanto inegavelmente
atraente, esse sindicalismo operário nega as necessidades de um poder estatal.
Sob tal organização, a revolução nicaraguense não teria durado sequer dois
meses ante a contrarrevolução patrocinada pelos EUA que devastou o país. Ela
estaria inapta para mobilizar recursos necessários para manter um exército,
tomar medidas de segurança, ou construir e coordenar programas econômicos e
serviços humanos em escala nacional.
- Descentralização
vs. Sobrevivência
Para
uma revolução popular sobreviver, ela deve conquistar o poder de Estado e
usá-lo para quebrar o domínio exercito pela classe dominante sobre as
instituições e recursos da sociedade, e resistir ao contra-ataque reacionário que
certamente virá. Os perigos internos e externos que uma revolução enfrenta
necessitam de um poder centralizado que não satisfaz aos gostos de muitos, nem
na Rússia Soviética de 1917, nem na Nicarágua sandinista de 1980.
Engels
oferece uma avaliação pertinente de uma revolta na Espanha em 1872-73 na qual
os anarquistas alcançaram o poder ao longo do país. Primeiramente, a situação
prometia. O rei abdicou e o governo burguês mal contava com algumas centenas de
tropas mal treinadas. Todavia, essa força triunfou por ter enfrentado uma
rebelião paroquiada. “Cada cidade proclamou-se com um cantão soberano e
estabeleceu um comitê revolucionário(junta)”, Engels escreve. “Cada cidade agiu
por conta própria, declarando que o importante seria não a cooperação com
outras cidades, mas a separação delas, assim precluindo qualquer possibilidade
de um ataque combinado(contra as forças burguesas)”. Foi a fragmentação e
isolamento das forças revolucionárias que possibilitaram as tropas do governo
esmagar uma revolta após a outra”.
A
autonomia paroquiada descentralizada é o cemitério da insurgência – o que pode
ser a razão pela qual jamais houve uma rebelião anarco-sindicalista de sucesso.
Idealmente, seria bom ter apenas uma participação local, autogestionada, dos
trabalhadores, com a mínima burocracia, polícia e forças armadas. Esse seria
provavelmente o desenvolvimento do socialismo, se fosse permitido a ele se
desenvolver sem problemas com a contrarrevolução subversiva e ataques. Alguns
talvez se lembrem como em 1918-20, quatorze países capitalistas, incluindo os
Estados Unidos, invadiram a Rússia Soviética em uma sangrenta, mas afracassada
tentativa de derrubar o governo revolucionário bolchevique. Os anos da invasão
estrangeira e guerra civil contribuíram para reforçar a psicologia de cerco
bolchevique em seu compromisso com a sincronia de unidade do partido e um
aparato de segurança repressivo. Assim, em maio de 1921, o mesmo Lenin que
encorajou a prática de democracia partidária interna e lutou contra Trotsky
para garantir aos sindicatos maior autonomia, agora clamava pelo fim da
Oposição Operária e outros grupos dentro do partido. “A hora chegou”, ele disse
entusiasticamente no X Congresso do Partido, “de por um fim à oposição, de
fazê-la cessar: nós temos oposição demais”. Disputas abertas e tendências
conflitantes dentro e fora do partido, os comunistas concluíram, criaram uma
aparência de divisão e fraqueza que convidava o ataque de formidáveis inimigos.
Um
mês antes, em abril de 1921, Lenin clamara por mais representação operária no
Comitê Central do partido. Em poucas palavras, ele não se tornara
anti-operário, mas anti-oposição. Havia aqui uma revolução social – como
qualquer outra – que não teve a permissão de desenvolver sua vida política e
material sem óbices.
Durante
os anos 20, os soviéticos enfrentaram a escolha de se mover numa direção
centralizada com uma economia dirigida e coletivização agrária forçada e uma
industrialização a toda velocidade sob um partido dirigente e autocrático, a
estrada adotada por Stalin, ou mover-se numa direção liberalizada, permitindo
mais diversidade política, mais autonomia para os sindicatos e outras
organizações, mais debate aberto e críticas, maior autonomia entre as várias
repúblicas soviéticas, um setor de pequenos negócios privados, desenvolvimento
agrícola independente pelo campesinato, grande ênfase nos bens de consumo e
menos esforços na acumulação de capital necessário para construir uma forte
base militar-industrial.
O
último tipo, acredito, teria produzido uma sociedade mais confortável, mais
humana e com melhores serviços. O socialismo de cerco teria dado lugar ao
caminho para o socialismo de consumo operário. O problema é que o país teria
arriscado ser incapaz de resistir à ofensiva nazista. Em vez disso, a União
Soviética embarcou numa rigorosa e forçada industrialização. Esta política tem
sido frequentemente mencionada como um dos erros perpetrados por Stalin sobre
seu povo. Consistia mais em construir, dentro de uma década, uma base
industrial inteiramente nova no Leste, nos Urais, em meio às estepes agrestes,
o maior complexo de aço da Europa, em antecipação à invasão do Ocidente. “O
dinheiro foi gasto como água, homens congelaram, tiveram fome e sofreram, mas a
construção se deu com o desrespeito por indivíduos e um heroísmo de massas sem
paralelo na história”.
A
profecia de Stalin de que a União Soviética tinha apenas dez anos para fazer o
que os britânicos fizeram em um século provou-se correta. Quando os nazistas
invadiram em 1941, a mesma base industrial, seguramente distanciada em milhas
do fronte, produziram as armas da guerra que eventualmente mudaram o rumo da
maré. O custo dessa sobrevivência incluiu 22 milhões de soviéticos que
pereceram na guerra e incomensurável devastação e sofrimento, os efeitos
distorceriam a sociedade soviética por décadas depois.
Tudo
isso não quer dizer que tudo que Stalin fez foi uma necessidade histórica. As
exigências da sobrevivência revolucionária não “tornam inevitáveis” a execução
sem coração de centenas de velhos líderes bolcheviques, o culto da
personalidade de um líder supremo que clamava cada ganho revolucionário como
sua própria conquista, a supressão da vida política do partido através do
terror, o eventual silenciamento do debate referente ao ritmo da
industrialização e coletivização, a regulação ideológica de toda a vida
intelectual e cultural, as deportações em massa de nacionalidades “suspeitas”.
Os
efeitos transformadores do ataque contrarrevolucionário tem sido sentido em
outros países. Uma oficial sandinista que eu conheci em Viena, em 1986, notou
que os nicaraguenses não eram um “povo guerreiro”, mas eles tiveram que
aprender a lutar por que estavam face a uma guerra destrutiva, mercenária,
patrocinada pelos EUA. Ela enfatizou o fato de que a guerra e o embargo
forçaram seu país a protelar sua agenda socioeconômica. Tal como com a
Nicarágua, tal como Moçambique, Angola e numerosos outros países nos quais
forças mercenárias dos EUA destruíram fazendas, vilas, centros de saúde e
estações de energia, ao passo que matavam ou traziam a fome para centenas de
milhões – o bebê revolucionário foi estrangulado em seu berço ou impiedosamente
sangrado antes de seu reconhecimento. Essa realidade deve ganhar tanto reconhecimento
quanto a supressão de dissidentes nesta ou naquela sociedade revolucionária.
A
derrubada dos governos comunistas soviético e do Leste Europeu foi aplaudida
por muitos intelectuais de esquerda. Agora a democracia teria seu dia. O povo
estaria livre do julgo do comunismo e a esquerda dos EUA estaria livre do
albatroz de tal comunismo existente, como Richard Lichtman colocou, “liberada
do íncubo da União Soviética e da súcubo da China comunista”.
Na
verdade, a restauração capitalista na Europa Oriental enfraqueceu seriamente as
numerosas lutas de libertação do Terceiro Mundo que recebiam ajuda da União
Soviética e trouxe uma nova onda de governos de direita, os que agora funcionam
lado a lado com as contrarrevoluções globais dos EUA ao longo do globo.
Em
adição, a derrubada do comunismo deu luz verde para os impulsos exploratórios
descontrolados dos interesses corporativos ocidentais. Não há mais a
necessidade de convencer aos trabalhadores que eles vivem melhor que seus
colegas na Rússia, não estão num sistema concorrente, a classe corporativa está
retirando as principais conquistas que o povo trabalhador conseguiu ao longo
dos anos. “Capitalismo com face humana” está sendo substituído por “capitalismo
na sua face”. Como Richar Levisn coloca, “então na nova agressividade
exuberante do capitalismo mundial nós vemos do que haviam se distanciado os
comunistas e seus aliados” (Monthly review, 9/96).
Tendo
jamais entendido o papel dos poderes comunistas existentes desempenhado no
temperamento dos piores impulsos do capitalismo ocidental, e tendo percebido o
comunismo como nada além de um mal não mitigado, os anticomunistas de esquerda
não fizeram nada para antecipar as perdas que estavam por vir. Alguns deles
ainda não entendem isso.
*Escrito de Michael Parenti - cientista político,
jornalista, escritor, historiador e crítico cultural.
Cara, adorei o texto!!! Mas dê uma revisada. Há alguns erros de escrita como no começo onde você escreve: "Nos Estados Unidos, por centenas de anos, os interesses predominantemente incansáveis propagaram o anticomunismo entre a população"... Sei que é difícil revisar, mas também sabemos que é importantíssimo. Ademais, parabéns.
ResponderExcluirexcelente texto. obrigado por publicar no português para que este excepcional pensador seja conhecido aqui. vou compartilhar
ResponderExcluirTexto sensacional! Leitura obrigatória ! Que bom seria se pudéssemos ler mais textos desse autor pouco conhecido entre nós
ResponderExcluirMuito bom o texto. Muito obrigado por compartilhar. Como o camarada comentou, no início do texto, ao invés de “..., por centenas de anos” o certo seria “por mais de cem anos”.
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