sábado, 22 de dezembro de 2018

O financiamento da ClA para promover a cultura apolítica e anticomunista


símbolo da CIA
Hannah Arendt, George Orwell, Isaiah Berlin, Sidney Hook, Daniel Bell e muitos outros, e suas revistas, foram financiados pela CIA para se oporem aos artistas e escritores engajados na luta contra o capitalismo. Foi publicado recentemente, em Londres, o livro Who Paid the Piper: The ClA and the Cultural Cold War (Quem pagou a conta? - a ClA e a guerra fria cultural), de Frances Stonor Saunders, que faz uma detalhada estimativa das formas pelas quais a CIA atuou e influenciou em um grande número de organizações culturais, através de seus agentes ou por meio de organizações filantrópicas, como as fundações Ford e Rockefeller. A autora dá detalhes de como e porque a CIA organizou congressos culturais, montou exibições de arte e organizou concertos.

A CIA também publicou e traduziu autores conhecidos que seguiam a linha de Washington, financiou a arte abstrata contra arte com conteúdo social e, pelo mundo, subsidiou jornais que criticavam o marxismo, o comunismo e políticas revolucionárias. Justificou também, ou ignorou, as políticas imperialistas violentas e destrutivas dos EUA. A CIA criou um biombo para alguns dos principais expoentes da liberdade intelectual no Ocidente, colocando-os a seu serviço, a ponto de incluir alguns desses intelectuais em sua folha de pagamentos. Muitos eram conhecidamente envolvidos em "projetos" da CIA, e outros circulavam em sua órbita, alegando desconhecer a ligação com a CIA depois que esses financiamentos foram denunciados no final da década de 1960 e durante a guerra do Vietnã, quando a onda política virou-se para a esquerda. Publicações anticomunistas americanas e europeias receberam fundos diretos e indiretos, incluindo Partisan Review, Kenyon Review, New Leader, Encounter e muitas outras.

Entre os intelectuais financiados e promovidos pela CIA estavam Irving Kristol, Melvin Lasky, Isaiah Berlin, Stephen Spender, Sidney Hook, Daniel Bell, Dwight MacDonald, Roberto Lowell, Hannah Harendt, Mary McCarthy e numerosos outros, nos EUA e na Europa. Na Europa, a CIA estava particularmente interessada em promover a "esquerda democrática" e ex-esquerdistas, como Ignacio Silone, Stephen Spender, Arthur Koestler, Ràymond Aron, Anthony Crosland, Michael Josselson e George Orwell.

Sob o estímulo de Sidney Hook e Melvin Lasky, a CIA teve importante papel no financiamento e promoção do Congresso Para a Liberdade Cultural, uma espécie de OTAN da cultura, que reuniu toda a sorte de "anti-stalinistas" de direita e de esquerda.

Eles tinham toda a liberdade para defender valores políticos e culturais do Ocidente, atacar o "totalitarismo stalinista" e tagarelar suavemente sobre o racismo e o imperialismo americanos. Ocasionalmente, críticas marginais contra a sociedade de massa americana apareciam nos jornais subsidiados pela CIA.

O que era particularmente bizarro nesse conjunto de intelectuais financiados pela CIA não era só seu sectarismo político, mas a pretensão de que serem pesquisadores desinteressados da verdade, humanistas iconoclastas, intelectuais de espírito livre ou artistas adeptos da arte pela arte, que se contrapunham aos artistas corrompidos, comprometidos e prostituídos pelo aparato stalinista.

É impossível acreditar quando eles juravam ignorar as ligações com a CIA. Como poderiam ignorar a ausência, em seus jornais, de qualquer crítica mesmo elementar aos numerosos linchamentos que ocorriam em todo o sul dos EUA nessa época? Como poderiam ignorar a ausência, em seus congressos culturais, de críticas à intervenção imperialista na Guatemala, Irã, Grécia e Coréia, que deixaram milhões de mortes? Como poderiam ignorar as grosseiras desculpas, nos jornais onde escreviam, para os crimes imperialistas? Eles eram soldados: alguns lisonjeiros, cáusticos, rudes e polêmicos, como Hook e Lasky; outros, ensaístas elegantes, como Stephen Spender, ou informantes donos-da-verdade, como George Orwell.

Saunders retrata como a elite wasp (sigla de White, Anglo-Saxon, Protestant, expressão que designa a elite americana, branca, protestante e anglo-saxã) manipula os cordéis da CIA; descreve também o rosnar de antigos esquerdistas contra aqueles que permanecem atuando nos movimentos de esquerda.

Quando a verdade sobre esses financiamentos da CIA veio à tona, no final da década de 1960, alguns "intelectuais" de Nova York, Paris e Londres fingiram indignação, alegando terem sido manipulados. Foram desmentidos por Tom Braden, ex-dirigente da Seção das Organizações Internacionais da CIA, que os desmascarou dando detalhes de como eles, na verdade, sabiam quem pagava seus salários e bolsas. De acordo com Braden, a CIA financiou sua "conversa fiada literária", frase usada pelo dirigente linha dura da CIA, Cord Meyer, para descrever os exercícios intelectuais antistalinistas de Hook, Kristol e Lasky. Ele revelou que as mais prestigiosas e co-nhecidas publicações da chamada "esquerda democrática" (Encounter, New Leader, Partisan Review) foram financiadas pela CIA, e que "um agente se tomou diretor da Encounter". Em 1953, escreveu, "estávamos operando ou influenciando organizações internacionais em todos os campos".

O livro de Saunders dá informações úteis sobre as formas como esses trabalhadores intelectuais da CIA defendiam os interesses imperialistas dos EUA nas frentes culturais, e abre uma importante discussão sobre as consequências a longo prazo das posições ideológicas e artísticas defendidas por esses agentes intelectuais do imperialismo.

Saunders refuta as afirmações de Hook, Kristol e Lasky de que a CIA e as fundações a ela ligadas promoviam ajuda sem exigir contrapartida. Demonstra que, ao contrário, "esperava-se que os indivíduos e instituições subsidiados pela CIA fossem ( ... ) parte de uma propaganda de guerra". A propaganda mais eficiente era definida pela CIA como aquela em que "o sujeito se move na direção em que você deseja, por razões que ele acredita serem as suas próprias". A CIA dava dinheiro para a tagarelice da esquerda democrática sobre reforma social, mas o que lhe interessava mesmo eram as polêmicas "anti-stalinistas" e as diatribes literárias contra os marxistas ocidentais e os escritores e artistas soviéticos. Os autores dessas diatribes recebiam financiamentos mais generosos e eram promovidos com maior visibilidade. Para Braden, elas refletiam a "convergência" entre a CIA e a esquerda democrática na luta contra o comunismo. A colaboração entre a esquerda democrática e a CIA incluía ações anti-greves na França, deduragem contra stalinistas (Orwell e Hook), e campanhas difamatórias disfarçadas para evitar que artistas de esquerda tivessem reconhecimento (como ocorreu quando Pablo Neruda foi indicado para o prêmio Nobel de literatura, em 1964).

Para combater a atração do comunismo e o crescimento dos partidos comunistas na Europa (especialmente na França e Itália), a CIA criou um programa de mão dupla. Por um lado, diz Saunders, certos autores europeus foram promovidos como parte de um "programa anticomunista" explícito. O critério cultural adotado pela CIA para "textos adequados" incluía "críticas contra a política externa soviética e contra o comunismo como forma de governo, desde que considerados objetivos e escritos de maneira convincente e oportuna". A CIA gostava especialmente de publicar textos de autoria de ex-comunistas desiludidos, como Silone, Koestler e Gide. A CIA promoveu escritores anticomunistas, financiando generosamente conferências em Paris, Berlim ou Bellagio, às margens do Lago Como, na Itália, onde cientistas sociais e filósofos como Isaiah Berlin, Daniel Bell e Czeslow Milosz pregavam seus valores (e as virtudes da 'liberdade e independência intelectual do Ocidente', dentro dos parâmetros anticomunista e pró-Washington definidos pelos seus patrões da CIA). Nenhum desses intelectuais de prestígio teve coragem de levantar a menor dúvida ou questionamento sobre o apoio dos EUA aos assassinatos em massa na Indonésia e na Argélia, a caça às bruxas contra intelectuais norte-americanos ou os linchamentos paramilitares promovidos pela Ku Klux Klan no sul dos EUA, assuntos "banais" que deviam ser deixados aos comunistas, segundo Sidney Hook, Melvin Lasky e o grupo do Partisan Review, que procurou avidamente recursos financeiros para evitar a falência da revista. Aliás, muitas dessas famosas revistas anticomunistas teriam falido sem o dinheiro da CIA, que comprou milhares de exemplares e, mais tarde, distribuiu-os gratuitamente.

O outro caminho usado pela CIA para a intervenção cultural foi muito mais sutil. Ele envolvia a promoção de sinfonias, exibições de artes plásticas, balé, grupos de teatro, e a apresentação de músicos de jazz famosos e cantores de ópera, com o objetivo explícito de neutralizar o sentimento antiimperialista na Europa e criar um ambiente favorável à cultura e ao governo norte-americanos. A ideia que orientava essa política era difundir a cultura norte-americana, para alcançar a hegemonia cultural em apoio ao império militar e econômico dos EUA. A CIA gostava especialmente de enviar artistas negros para a Europa particularmente cantores (como Marion Anderson), escritores e músicos (como Louis Armstrong), para neutralizar a hostilidade europeia contra a política interna racista dos EUA. Se os intelectuais negros não aderiam ao script artístico e faziam críticas explícitas, eram banidos da lista, como foi o caso do escritor Richard Wright.

O nível de controle político da CIA sobre a agenda intelectual dessas atividades artísticas aparentemente apolíticas foi demonstrado claramente na reação dos editores de Encounter (Lasky e Kristol, entre outros) contra um artigo proposto por Dwight MacDonald. Ele era um dissidente anarquista e antigo colaborador do Congresso Para a Liberdade Cultural e de Encounter para a qual escreveu, em 1958, um artigo intitulado "America America", criticando a cultura de massa americana, seu materialismo rude e falta de civilidade. Era uma negação dos valores americanos, a matéria-prima da qual era feita a propaganda da CIA e da Encounter na guerra cultural contra o comunismo. O ataque de MacDonald ao "decadente império americano" foi demais para a CIA e seus intelectuais empregados na Encounter. Embora Braden tenha escrito, nas instruções para os intelectuais, "que não se pode exigir, das organizações financiadas pela CIA, o apoio a todos os aspectos da política dos EUA", esse era geralmente o quesito mais importante quando estava em jogo a política externa dos EUA. Apesar de MacDonald ser um ex-editor de Encounter, seu artigo foi recusado, mostrando que as queixas piedosas contra a guerra fria feitas por escritores como Nicola Chiaromonte, publicadas na segunda edição de Encounter, segundo as quais "nenhum intelectual pode deixar de aceitar, sem degradar-se, o dever de desmascarar ficções, não aceitando 'mentiras úteis' apresentadas como verdades", certamente não se aplicava a Encounter e sua famosa lista de colaboradores quando se tratava de lidar com as "mentiras úteis" do Ocidente.

Uma discussão importante e fascinante no livro de Saunders revela a ação da CIA e seus aliados no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que aplicaram muito dinheiro para promover as pinturas e os pintores do expressionismo abstrato como antídoto contra a arte de conteúdo social. Nessa ação, a CIA chocou-se com a direita no Congresso dos EUA. Ela viu nessa arte uma "ideologia anticomunista, a ideologia da liberdade e da livre empresa. Não figurativa e politicamente silenciosa, era a perfeita antítese do realismo socialista" . A CIA e o MoMA viram essa arte como a verdadeira expressão da vontade nacional americana. Para enfrentar a crítica da direita parlamentar, a CIA voltou-se para a iniciativa privada (isto é, o MoMA e seu co-fundador, Nelson Rockefeller, que se referia ao expressionismo abstrato como "a pintura da livre empresa"). Muitos diretores do MoMA tinham ligações antigas com a CIA, e apoiavam a promoção do expressionismo abstrato como arma da guerra fria cultural. Mostras dessa arte foram organizadas em toda a Europa, sendo gasto muito dinheiro para isso. Críticos de arte foram mobilizados, e revistas de arte publicaram artigos com generosos elogios. A combinação dos recursos econômicos do MoMA com a ajuda da Fundação Fairfield, ligada à CIA, assegurou a colaboração das galerias europeias de maior prestígio que, por sua vez, puderam influenciar a estética em toda a Europa.

O expressionismo abstrato, como ideologia de uma "arte livre" (como disse George Kenan), foi usada para atacar politicamente os artistas engajados na Europa. O Congresso Para a Liberdade Cultural (ponta de lança da CIA) deu grande apoio à pintura abstrata, contra a estética figurativa e realista, numa atitude explicitamente política. Comentando o papel político do expressionismo abstrato, Saunders diz que "um dos papéis extraordinários que a pintura americana teve na guerra fria cultural não foi o fato de participar daquela jogada, mas sim o de um movimento tão deliberadamente apolítico ter se tomado tão intensamente politizado." A CIA associou artistas apolíticos e arte com liberdade para neutralizar os artistas da esquerda europeia. A ironia aqui, é claro, era que a postura apolítica só valia para o consumo da esquerda.

A CIA e suas organizações culturais puderam, com isso, moldar profundamente a visão da arte no pós-guerra. Muitos escritores de prestígio, poetas, artistas e músicos proclamaram sua independência política, declarando sua crença na arte pela arte. O dogma do artista ou intelectual livres, isto é, sem engajamento político, ganhou força, e ainda hoje é muito difundido.

Saunders apresenta um balanço muito detalhado das ligações entre a CIA e os artistas e intelectuais do Ocidente, mas não explorou as razões estruturais pelas quais a espionagem dos EUA tinha de controlar os dissidentes. Sua discussão é amplamente emoldurada pela competição política e do conflito com o comunismo soviético, sem nenhuma tentativa séria de colocar a guerra fria cultural no contexto da luta de classes, das revoluções do Terceiro Mundo e dos desafios dos marxistas independentes à dominação do imperialismo econômico dos EUA. Isso leva Saunders a privilegiar algumas aventuras e operações da CIA em detrimento de outras. Ao invés de ver a guerra cultural da CIA como parte de um sistema imperialista, Saunders tende a criticar sua natureza reativa desigual e enganadora. A conquista cultural do Leste europeu e da ex-URSS pela OTAN deveria dissipar rapidamente a noção de que a guerra cultural foi uma ação defensiva.

As raízes da guerra fria cultural estão fincadas na luta de classes. Muito antes, a CIA e seus agentes na central sindical americana AFL-CIO, Irving Brown e Jay Lovestone (ambos ex-comunistas), usaram milhões de dólares para corromper sindicatos militantes e acabar com greves comprando sindicatos social-democratas. O Congresso para a Liberdade Cultural e seus intelectuais eruditos eram financiados pelos mesmos funcionários da CIA que em 1948 contrataram gangsters de Marselha, na França, para acabar com uma greve de estivadores.

Depois da II Guerra Mundial, com o descrédito da velha direita na Europa Ocidental (comprometida por suas ligações com o fascismo e com um sistema capitalista enfraquecido), a CIA percebeu que, para submeter os sindicatos e intelectuais contrários à política dos EUA e à OTAN era preciso encontrar (ou inventar) uma esquerda democrática disposta a se engajar na luta ideológica. Foi criada então uma seção especial da CIA para neutralizar a resistência dos políticos de direita no Congresso dos EUA. A esquerda democrática foi usada essencialmente para combater a esquerda radical e dar um verniz ideológico à hegemonia norte-americana na Europa. Mas não cabia a esses pugilistas ideológicos moldar as estratégias políticas e os interesses dos EUA. Sua tarefa não era questionar ou exigir, mas servir ao império em nome dos "valores democráticos ocidentais". Somente quando a oposição em massa à guerra do Vietnã tomou conta dos EUA e da Europa, e suas ligações com a CIA foram reveladas, muitos dos intelectuais financiados e promovidos por ela abandonaram o barco e começaram a criticar a política externa dos EUA, como Stephen Spender que, depois de passar a maior parte de sua carreira na folha de pagamentos da CIA, tomou-se um crítico da política norte-americana no Vietnã; alguns editores da Partisan Review fizeram o mesmo. Alegavam inocência, mas poucos críticos acreditaram que um namoro com tantas publicações e conferências, antigo e com um envolvimento tão profundo, pudesse ter acontecido sem um grau mínimo de conhecimento.

O envolvimento da CIA na vida cultural dos EUA, Europa e outros lugares teve importantes consequências em longo prazo. Muitos intelectuais foram recompensados com prestígio, reconhecimento público e dinheiro para pesquisas precisamente por trabalhar dentro do cabresto ideológico imposto pela agência. Alguns dos grandes nomes da filosofia, ética política, sociologia e arte, que ganharam visibilidade com as publicações e seminários financiados pela CIA, foram quem definiram as normas e padrões para a formação das novas gerações, seguindo os parâmetros políticos criados pela CIA. Não foi o mérito ou o talento, mas a política - a linha definida por Washington como "verdade" ou "excelência" - que abriu caminho para postos em universidades, fundações e museus de maior prestígio.

A retórica anti-stalinista dos EUA e da esquerda democrática europeia e suas proclamações de fé nos valores democráticos e libertários foram uma cobertura ideológica útil para os horríveis crimes cometidos em nome do Ocidente. Isso repetiu-se na recente guerra da OTAN contra a Iugoslávia, quando muitos intelectuais da esquerda democrática puseram-se ao lado do Ocidente e do ELK (Exército de Libertação de Kosovo), apoiando o sangrento expurgo de milhares de sérvios e o assassinato em massa de civis inocentes. Se o anti-stalinismo foi o ópio da esquerda democrática durante a guerra fria, o intervencionismo a pretexto de defesa dos direitos humanos tem hoje o mesmo efeito narcotizante e ilude membros da esquerda democrática contemporânea.

As campanhas culturais da CIA criaram o protótipo de intelectuais, acadêmicos e artistas que, hoje, se dizem apolíticos, divorciados das lutas populares, e cujo valor aumenta na medida em que se distanciam das classes trabalhadoras e se aproximam das fundações de prestígio. O modelo que a CIA fixou, de profissional de sucesso, é o do leão de chácara ideológico, e exclui intelectuais críticos que escrevem sobre a luta de classes, a exploração dos trabalhadores, e o imperialismo norte-americano categorias consideradas "ideológicas" e não "objetivas", como eles dizem.

A pior e mais duradoura influência do pessoal do Congresso para a Liberdade Cultural não foi a defesa das políticas imperialistas dos EUA, mas o êxito em impor, para as gerações seguintes de intelectuais a ideia de excluir toda discussão sobre o imperialismo norte-americano, sua influência cultural e sua ação através dos meios de comunicação de massas. A questão não é se os intelectuais ou artistas podem ou não tomar partido ou assumir uma posição progressista numa ou outra questão. O problema é a crença difundida, entre escritores e artistas, de que expressões sociais e políticas antiimperialistas não devem aparecer em suas canções, pinturas e escritos, se querem ter sua obra valorizada como trabalho de substancial mérito artístico. A vitória política duradoura da CIA foi a de convencer intelectuais e artistas de que um engajamento sério e firme à esquerda é incompatível com arte e conhecimentos sérios. Hoje, na ópera, teatro, galerias de arte, nas reuniões profissionais nas universidades, aqueles valores culturais que a CIA promoveu na guerra fria cultural são visíveis: quem ousará dizer que o rei está nu?


James Petras é sociólogo norte-americano. Esta resenha foi publicada originalmente em Monlhly Review, vaI. 51, n° 6, novembro de 1999. Tradução de Luciana Cristina Ruy.
  

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Consenso sobre a economia ‘socialista de mercado’ do Vietnã


por Chu Van Cap* | Tạp chí Cộng Sản - Tradução de Gabriel Deslandes

Nota do blog: publicamos esse texto mesmo discordando integralmente do seu conteúdo. Consideramos a perspectiva do autor muito ruim, contudo, como temos poucos documentos e pesquisas sobre a experiência atual do Vietnã, essa publicação de um acadêmico de prestígio do país, é uma útil fonte de pesquisa.  


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Vietnã
O Partido, o Estado e o povo vietnamita construíram e desenvolveram persistentemente a economia de mercado orientada pelo socialismo nos últimos anos. Contudo, tem havido preocupação acerca do caminho escolhido, especialmente nos períodos difíceis da economia nacional. Assim, é necessário buscar um consenso e conscientização a respeito do modelo econômico vietnamita.

Construir e desenvolver uma economia de mercado orientada para o socialismo é imperativo tanto na teoria quanto na prática.

1. Desenvolver a economia de mercado orientada para o socialismo é um imperativo

A presença (ou reconhecimento) da economia de mercado nos países demonstra que esse modelo tem uma forte vitalidade e segue um desenvolvimento natural de acordo com as normas históricas da humanidade.

Antes das reformas e a abertura chinesas e a renovação vietnamita, a economia de mercado estava associada ao desenvolvimento do capitalismo e, segundo alguns, seria produto único do capitalismo. Economia de mercado significaria economia capitalista. Na realidade, a economia de mercado é o produto da história do desenvolvimento social humano e da conquista da civilização humana. Karl Marx afirmou que a economia de mercado era um estágio essencial do desenvolvimento histórico que qualquer economia atravessaria para alcançar um estágio de desenvolvimento superior, e que o socialismo e o comunismo são os estágios superiores ao capitalismo nesse processo humano. O socialismo e o comunismo só chegarão quando as forças produtivas se desenvolverem. Para alcançar esse nível, a economia de mercado deve crescer e se tornar popular na vida socioeconômica. Somente desenvolvendo a economia de mercado será possível criar as premissas e condições para alcançar o socialismo.

Notavelmente, há vários modelos de economia de mercado no mundo, a saber, “economia social de mercado” na República Federal da Alemanha, a “economia aliada de mercado” no Japão, a “economia de mercado do Estado de bem-estar” nos países do norte da Europa e “economia socialista de mercado” na China. A realidade mostra que a economia de mercado pode ser construída em países de diferentes instituições socioeconômicas, com módulos específicos relevantes para as condições objetivas concretas de cada país. Entretanto, esses modelos foram construídos e operados segundo regras fundamentais de integração internacional com características típicas de uma economia de mercado (reconhecimento da propriedade privada, liberdade de negócios e competitividade, promoção da eficácia do mercado e mecanismo de mercado com Estado regulando a macroeconomia).

2. A seleção do modelo de economia de mercado no Vietnã está sob forte pressão mundial e doméstica

A revolução científico-tecnológica vem ocorrendo em escala sem precedentes no mundo, promovendo grandes conquistas. Sob os impactos da revolução científico-tecnológica, muitos países do mundo se reestruturaram, abriram suas economias e desenvolveram a economia de mercado sob a administração do Estado. Além disso, o colapso do sistema econômico socialista na antiga União Soviética e na Europa Oriental, bem como a reforma orientada para o mercado na China, puseram fim a um modelo econômico burocrático, que quase cobria o mapa econômico mundial, e a diferenciação dos níveis de desenvolvimento só podem ser encontrados em diferentes tons de cor. A sombra mais escura no mapa implica a economia de mercado da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

No Vietnã, a economia sem mercado e o modelo econômico de setor único se mostraram ineficazes. A economia do Vietnã antes do processo de renovação – no Norte desde 1958 e, em todo o país, desde 1976 – seguia o modelo soviético de economia socialista, caracterizado pela dominação da propriedade dos meios de produção pelo Estado socialista sob duas formas – pessoal e coletiva. Todas as atividades de produção e negócios de unidades econômicas do Estado e setores coletivos estavam sujeitas à orientação unificada a nível central. Isso significa que as unidades de produção devem seguir um plano desenvolvido central, que atribui o que e como produzir, a quantidade, os preços e onde vender os produtos.

No final da década de 1970, o país caiu em grave crise socioeconômica; produção diminuída; as transações estavam estagnadas; a vida das pessoas era extremamente difícil. Durante o período de 1976-1980, a taxa de crescimento anual do PIB foi de 1,4%; a produção industrial e agrícola ficou parada. A produção de arroz em 1980 atingiu 11,647 milhões de toneladas, enquanto a meta era de 21 milhões de toneladas, inferior a de 1976, resultando em uma importação de 1,57 milhões de toneladas de alimentos.

Nessa situação, para tirar o país da crise socioeconômica, o Vietnã promoveu pesquisas e realizou um piloto de interação entre seus decisores políticos.

O primeiro avanço surgiu com o 6º Plenário do Comitê Central do Partido, em agosto de 1979, a fim de “fazer explodir a produção”. Esse foi considerado o “primeiro avanço” na mudança de políticas e linhas econômicas para retificar constrangimentos e erros na gestão, ajustar diretrizes econômicas, remover gargalos para o desenvolvimento das forças produtivas, criar impulso para a produção e atender aos essenciais dos trabalhadores.

O segundo avanço foi marcado pelo 8º Plenário do Comitê Central do Partido, 5º Mandato, em junho de 1985, com a linha “Erradicar resolutamente o mecanismo subsidiado pelo Estado de planejamento central burocrático, implementar um sistema de preços, remover o regime de oferta de tipo e preço baixo, mudar a produção e os negócios para transações comerciais socialistas e transações bancárias para empresas”. O significado deste plenário foi o reconhecimento da produção de mercadorias e regras de produção de mercadorias.

O terceiro avanço foi marcado pelo Projeto de Relatório Político para o 6º Congresso do Partido em agosto de 1986 e o ​​11º Plenário do Comitê Central do Partido, 5º Mandato em novembro de 1986, que formaram e afirmaram três perspectivas econômicas básicas: primeiro, na reestruturação econômica, a agricultura ser considerada a frente dianteira; segundo, a estrutura econômica multissetorial na reforma socialista como característica especial do período de transição; terceiro, embora tomando como plano o foco necessário para lidar corretamente com as relações entre mercadorias e dinheiro, erradicar resolutamente o mecanismo de subsídios pelo Estado centralmente planejado, fazendo a Lei do valor ser aplicada na política de preços para realizar o mecanismo de um preço.

Consequentemente, a demanda urgente da realidade e avanços no pensamento ajudaram a formar uma nova consciência sobre a regra do desenvolvimento no período de transição para o socialismo no Vietnã. O projeto-piloto na década de 1970, embora tenham passado por altos e baixos, lançou as bases para uma renovação abrangente iniciada pelo 6º Congresso do Partido que marcou um ponto de virada na causa da construção socialista, levando o país a um novo estágio de desenvolvimento e deslocando a economia estatalmente subsidiada, burocrática e centralmente planejada para a economia de mercado orientada para o socialismo.

Em suma, a consciência e a seleção da economia de mercado orientada pelo socialismo no Vietnã não eram uma combinação subjetiva do mercado e da economia socialista, mas a tendência objetiva de agarrar e aplicar a economia de mercado. O Partido Vietnamita aprendeu lições de desenvolvimento sobre a economia de mercado no mundo, particularmente da construção socialista no Vietnã e na China para avançar na política de desenvolvimento da economia de mercado orientada pelo socialismo. Essa linha demonstra o pensamento e a percepção do Partido acerca da conformidade das relações de produção com o nível das forças produtivas no período de transição para o socialismo no Vietnã.

Consciência sobre a unanimidade da economia de mercado e orientação socialista

O 9º Congresso do Partido em 2001 identificou formalmente o modelo econômico geral do período de transição para o socialismo vietnamita como “economia de mercado orientada para o socialismo”, o que significa uma clara confirmação da mudança para a economia de mercado. É essencial seguir esse modelo, já que não há alternativa enquanto a economia de mercado “cobrir” o mapa econômico mundial, e é impossível retornar à economia burocrática, centralmente planejada e subsidiada pelo Estado.

A confirmação do modelo econômico do Vietnã como a economia de mercado socialista fez a identificação das relações entre “economia de mercado” e a orientação socialista o conteúdo-chave na renovação de consciência no Vietnã nos últimos 30 anos e nos anos vindouros. Contudo, há opiniões de que a economia de mercado não combina com o socialismo, e os princípios básicos do socialismo científico, iniciados por Karl Marx e Friedrich Engels, não “contêm” a economia de mercado. Essa é uma das questões a serem esclarecidas.

De acordo com o 11º Congresso do Partido, “a economia de mercado orientada pelo socialismo do Vietnã é a economia multissetorial de mercadorias, operando sob a liderança do Partido Comunista do Vietnã e seguindo as regras da economia de mercado, enquanto liderada e regulada por princípios e a natureza do socialismo.[1] Essa explicação fez com que muitas pessoas entendessem que a atual economia de mercado orientada pelo socialismo é a “combinação física” entre a economia de mercado e a orientação socialista, e a “orientação socialista” é apenas “o sobretudo” da economia de mercado. Além disso, uma economia que é regulada por dois conjuntos de regras contrárias dificilmente poderia criar uma força motriz para o desenvolvimento socioeconômico, mas poderia impedir o desenvolvimento.

É necessário entender que a economia de mercado orientada pelo socialismo não é uma combinação das duas partes. “A orientação socialista não é o ‘sobretudo’ da economia de mercado, mas está dentro dos objetivos e capacidades da economia de mercado. Esse é o modelo de economia de mercado de novo tipo que supera restrições e impactos negativos, ao mesmo tempo em que obtém sucesso e promove características positivas e relevantes da economia de mercado capitalista. Elementos de orientação socialista se desenvolvem “internamente” no processo de desenvolvimento da economia de mercado moderna e sua integração internacional, manifestando-se nos seguintes pontos: 1. A economia orientada para o socialismo do Vietnã deve ter relações de produção progressivas que se ajustem ao nível de desenvolvimento das forças produtivas. Conta com várias formas de propriedade e setores econômicos nos quais o Estado desempenha o papel principal; 2. O papel da população como mestra da economia deve ser promovido no desenvolvimento socioeconômico; 3. Assegurar o progresso social e a igualdade, bem como a unanimidade do desenvolvimento econômico, do progresso social e da equidade em cada etapa e política de desenvolvimento; 4. Exercer a gestão do Estado de Direito no Vietnã socialista; 5. O Partido Comunista do Vietnã lidera a economia de mercado para alcançar como objetivo: “pessoas ricas, país forte, democracia, equidade e civilização”[2]. A liderança do Partido Comunista do Vietnã é pré-requisito para a orientação socialista da economia de mercado.

Assim, é possível dizer que o conteúdo mais importante na orientação socialista da economia de mercado no Vietnã é o desenvolvimento sustentável. Obviamente, na política de desenvolvimento vietnamita, o conceito de orientação socialista só pode ser realista quando “contém” o desenvolvimento sustentável para o progresso social e o desenvolvimento livre e abrangente de cada indivíduo. Assim, a economia de mercado e a orientação socialista não se contradizem, mas são unificadas.

Chegando a um consenso sobre a economia de mercado socialista em um novo contexto

Uma nova consciência sobre a economia de mercado orientada para o socialismo é identificada nos documentos do 12º Congresso do Partido. É a economia que opera plena e sincronicamente, seguindo a lei da economia de mercado, ao mesmo tempo em que assegura uma orientação socialista apropriada a cada estágio do desenvolvimento nacional. É a moderna economia de mercado na integração internacional sob a administração do Estado de Direito socialista, liderado pelo Partido Comunista do Vietnã, para alcançar os objetivos de “pessoas ricas, país forte, democracia, equidade e civilização”.[3]

Desse modo, a economia de mercado deve se ajustar ao contexto e ao nível de desenvolvimento da economia vietnamita e abordar os padrões fundamentais da economia de mercado moderna e da integração internacional. Provocada por práticas de países com economia de mercado desenvolvida, algumas características básicas e típicas da economia de mercado moderna e da integração internacional podem ser identificadas:

Primeiramente, ter formas mistas de propriedade das quais a propriedade de ações prevalece. As empresas de média e pequena dimensão têm maiores vantagens do que outros tipos de empresas e empresas, uma vez que os seus interesses e estatuto legal regulados por lei representam uma proporção elevada no total de outras formas de empresas e empresas.

Em segundo lugar, a moderna economia de mercado é a economia altamente “mercantilizada”. Isso não significa apenas que o mecanismo de mercado é mais eficaz do que outros mecanismos econômicos que existiram, mas uma economia de mercado realmente completa permite um ambiente competitivo saudável, igual e favorável a todos os tipos de empresas, facilita as vantagens e atenua as prioridades e incentivos para um ambiente de investimento e negócios igualitário. Além disso, para preservar a eficácia econômica, a intervenção estatal na economia de mercado deve respeitar os princípios do mercado e respeitar a lei do mercado.

Terceiro, a economia moderna se desenvolve com base em ciências e tecnologias modernas, economia do conhecimento e recursos humanos de alta qualidade. Adequadamente:

- Na economia de mercado moderna, a alta tecnologia em produtos representa uma grande proporção. Por exemplo, na Alemanha, Japão, Grã-Bretanha e França, as agências de alta tecnologia contribuem com 30% do seu PIB. Na economia de mercado dos EUA, é de 50% do PIB, em que a tecnologia da informação é responsável por 30%.

- A economia do conhecimento forma-se em uma economia desenvolvida, que considera o conhecimento como sua mais importante base para a produção, distribuição, troca e consumo. As principais características da economia do conhecimento são a ciência da computação e serviços relacionados. Atualmente, nas economias da OCDE, mais de 50% do valor total é proveniente de ramos baseados no conhecimento.

- As economias de mercado modernas europeias e americanas têm recursos humanos altamente qualificados, bem treinados e capazes, tipicamente “trabalhadores intelectuais”. Os EUA são um dos países com economia de mercado altamente desenvolvida e 70% dos trabalhadores são intelectuais.

Quarto, a estrutura econômica moderna: as proporções agrícolas e industriais diminuem e a dos serviços aumenta. Nos países da OCDE, o setor de serviços contribui com 70% do PIB, os EUA, 89%, e o Japão, 74%.

Serviços bancários financeiros (incluindo seguros) e serviços comerciais se tornaram dois ramos importantes, gerando a maior parte do valor agregado do setor de serviços e a força motriz do crescimento do setor econômico.

Quinto, a função do Estado na moderna economia de mercado. A história mostra que o Estado de Direito na economia de mercado existe para lidar com falhas de mercado e melhorar a equidade. Assim, o Estado na moderna economia de mercado tem a função principal de lidar com as falhas do mercado e melhorar a equidade social.

A intervenção do Estado deve obedecer a princípios relevantes para o mecanismo de mercado; o Estado regula o mercado, respeitando o papel e as funções do mercado. O mercado é uma entidade objetiva. Ele opera e se desenvolve seguindo suas próprias regras, dependendo da vontade de ninguém ou da organização social, até mesmo da vontade do governo. Nas economias de mercado desenvolvidas, os Estados intervêm, em certa medida e sob diferentes formas, dependendo da aplicação de teorias econômicas – “o máximo do Estado, o mínimo do mercado”, segundo a teoria econômica de Keynes; “o Estado menos, o mercado mais” do neoliberalismo ou a estreita combinação da “mão invisível” (mecanismo de mercado) e a “mão visível” (o Estado) para regular a economia. Adotando qualquer ponto de vista, o Estado ainda deve aplicar e observar a lei de economia de mercado.

Em sexto lugar, a moderna economia de mercado é uma economia “aberta” com instituições de economia de mercado se desenvolvendo em direção à globalização, regionalização, acordos bilaterais e multilaterais de livre comércio com propósito de fortalecer a regulação do Estado na economia dentro e fora dos limites de seu país.

A abordagem da moderna economia de mercado e a integração internacional do modelo de economia de mercado do Vietnã deveriam adotar padrões e capacidades modernos e garantir elementos distintos e únicos orientados para o socialismo vietnamita.

* Chu Van Cap é ex-diretor do Instituto de Economia Política da Academia Nacional de Política Ho Chi Minh.

Fontes:

[1] Documentos do 11º Congresso Nacional do Partido, a Casa-Verdade Nacional de Publicações Políticas, Hanói, 2011, p.34.

[2] Documentos do 12º Congresso Nacional do Partido, Gabinete do Comitê Central do Partido, Hanói, 2016, p.102.

[3] Documentos do 12º Congresso Nacional do Partido, Gabinete do Comitê Central do Partido, Hanói, 2016, p.102.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O colapso da União Soviética reconsiderado


Trabalho apresentado ao Segundo Congresso Internacional, "Marx em Maio"

Roger Keeran e Thomas Kenny


Símbolo clássico da URSS
Em 2004, Thomas Kenny e eu escrevemos o livro O Socialismo Traído: Por trás do colapso da União Soviética. Desde esse ano, o livro foi publicado e resenhado na Bulgária, Rússia, Irã, Turquia, Grécia, Portugal, França, Cuba e Espanha. Juntos ou separadamente, os autores participaram em debates sobre o livro na Grécia, Portugal, França e Cuba, e foram publicadas várias críticas em jornais de esquerda. Nesta exposição, Kenny e eu queremos responder a dois tipos de críticas e a uma questão suscitadas pelo livro. Nele desenvolvemos uma explicação do colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Usamos as palavras "colapso" e "traído" no título, apesar das possíveis conotações equívocas de ambas as palavras.

No entanto não se levantaram dúvidas sobre o que tentamos explicar, ou seja, a transformação radical que arredou do poder político o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), aboliu a maioria da propriedade estatal, o planejamento centralizado e o sistema de serviços sociais, e fragmentou o Estado multinacional. Argumentamos que a União Soviética não colapsou porque o socialismo fracassou. Ao invés, o sistema socialista baseado na propriedade coletiva ou estatal e no planejamento central teve um assinalável êxito, em particular do ponto de vista do povo trabalhador. O sistema provou ser capaz de assegurar um crescimento econômico sustentado durante seis décadas, produziu notáveis inovações técnicas e científicas e proporcionou benefícios econômicos e sociais sem precedentes a todos os cidadãos. Ao mesmo tempo defendeu-se permanentemente da invasão externa, da sabotagem e ameaças, e prestou ajuda econômica, auxílio técnico e proteção militar a outras nações em luta pela independência e o socialismo.

A União Soviética, no entanto, teve problemas - alguns relacionados com a ossificação política e ideológica, outros ligados à quantidade e qualidade da produção da economia, outros ainda derivados da confrontação com o imperialismo. No entanto, não foram estes problemas que causaram o colapso do sistema. O que derrubou o socialismo soviético foram as políticas prosseguidas por Mikhail Gorbatchov. Essas políticas baseadas na crença de que os problemas do socialismo poderiam ser resolvidos através de concessões unilaterais ao imperialismo e da incorporação no socialismo de certas ideias e políticas do capitalismo. Estas ideias tinham raízes no discurso político soviético, mas nunca haviam triunfado de forma tão completa como com Gorbatchov.

O que permitiu que essas ideias ganhassem ascendência foi o fato de nas três décadas anteriores se ter desenvolvido dentro da União Soviética um setor pequeno-burguês, que se enraizou sobretudo na economia privada ilegal. Esta chamada "segunda economia", causou danos à primeira economia, desmoralizou uma parte da população, corrompeu segmentos do partido comunista e do governo, e forneceu uma base social para as políticas prosseguidas por Gorbatchov. Em vez de sarar os problemas do socialismo, as políticas de Gorbatchov provocaram num curto prazo o caos completo na economia e acabaram por derrubar o socialismo.


 Crítica número 1.


             Algumas críticas alegam que a nossa explicação ignora a causa profunda do colapso, isto é, que a tentativa de construir o socialismo na União Soviética estava condenada desde o início, devido ao insuficiente desenvolvimento das forças produtivas.

             Não é uma tese nova. Em 1918, Karl Kautski afirmou que a Rússia não estava preparada para o socialismo. A ideia provém de Karl Marx e Friedrich Engels, que acreditavam que só o desenvolvimento completo das forças produtivas no capitalismo criaria as pré-condições para a abolição das classes, e baseia-se numa descrição do atraso da Rússia feita por Engels em 1875. De acordo com este ponto de vista, a União Soviética só poderia avançar para o socialismo permitindo primeiro o florescimento da iniciativa privada e o desenvolvimento das forças produtivas através de empresas mistas com capitais estrangeiros. Ambas as coisas teriam acontecido se a União Soviética tivesse continuado a chamada Nova Política Econômica (NEP), introduzida por Lênin em 1921. O corolário desta tese é a alegação de que a União Soviética só poderia ter evitado o colapso se enveredasse pelo caminho atual da China ou do Vietnam, o caminho da "economia de mercado com orientação socialista".

Esta explicação levanta problemas maiores. Não é nada claro que o pensamento de Marx e Engels fosse, neste caso, a linha adequada a seguir pelos comunistas soviéticos nos anos 20. Mesmo que as condições soviéticas pudessem não ser as ideais para construir o socialismo, Marx tinha bem a consciência de que, como disse em 1853, "os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias da sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado".

Além disso, em 1917, a Rússia não era um país tão atrasado como o descreveu Engels em 1875. Possuía algumas das maiores fábricas do mundo, e dez por cento da sua população trabalhava na indústria. Reconhecidamente, a nova União Soviética continuava a ser essencialmente um país rural. Os líderes soviéticos, como Viatcheslav Mólotov, reconheceram mais tarde que o atraso "afetou negativamente o socialismo". Não obstante, aqueles que pensam que o atraso não só afetou negativamente o socialismo como o condenou, defrontam-se com três objeções. A primeira é a de que, por muito atrasada que estivesse no início dos anos 20, a União Soviética não se manteve nessa situação. Tendo como vantagens recursos naturais ricos, uma liderança talentosa e uma população motivada, a União Soviética tornou-se na segunda potência econômica, apenas superada pelos EUA. Em 1984, o economista Harry Shaffer escreveu: "Os Estados Unidos continuam à frente da União Soviética em termos de produção bruta e per capita, de consumo e nível de vida. Mas a União Soviética tem vindo a aproximar-se gradualmente dos Estados
Unidos."

Assim, mesmo que no início as forças produtivas estivessem num estado de atraso, tal não era certamente a situação em 1985. Apesar de o desenvolvimento industrial da União Soviética ser indiscutível, alguns acreditam, todavia, que o atraso original enfraqueceu fatalmente o sistema. Erwin Marquit afirma que o atraso original levou os soviéticos a recorrerem ao "modelo utópico da economia planejada", e que essa economia planejada "provou ser incapaz de acertar o passo com desenvolvimento tecnológico orientado pelo mercado no Ocidente". Isto não é convincente. Com efeito é precisamente o oposto que é verdadeiro. Foi através da propriedade estatal e do planejamento que a economia soviética fez progressos notáveis, não só economicamente mas também tecnologicamente. Nos anos 80, o desenvolvimento tecnológico soviético não igualava o dos EUA, mas não estava longe, e aproximava-se gradualmente. Num livro sobre ciência e tecnologia socialista, publicado em 1989, John W. Kiser III afirmou que a ideia do "fosso tecnológico" era um exagero criado pela "crença norte-americana na inferioridade inerente ao sistema soviético". Devido ao fato de a União Soviética não incentivar a comercialização das suas realizações tecnológicas, o Ocidente manteve "uma tendência persistente para as subestimar". Kiser assinala, entre outros, os avanços tecnológicos nos setores da metalurgia, química, indústria alimentar, biomedicina, alcançados pelos soviéticos e países socialistas do Leste europeu.

Quanto à tecnologia informática, em 1986, a CIA concluiu que existia um fosso entre a União Soviética e o Ocidente em matéria de software e hardware, mas ressalvava que "os soviéticos continuarão a fazer rápidos progressos em termos absolutos", e em dez ou 15 anos "as instituições científicas de topo terão provavelmente equipamentos comparáveis aos melhores que hoje dispõem os laboratórios nacionais dos EUA". Por outras palavras, o fosso tecnológico era pequeno e diminuía. Assim, o atraso tecnológico dificilmente pode explicar de forma convincente o colapso. Um segundo problema da explicação baseada no atraso tecnológico é a presunção de que a Nova Política Econômica (NEP), isto é, a promoção do desenvolvimento através da iniciativa privada e do investimento externo, seria uma opção real. É como afirmar que a Guerra Civil norte-americana poderia ter sido evitada se o Norte permitisse que a escravatura desaparecesse de modo natural. Apesar de esta ideia poder ser apelativa para aqueles que culpam os abolicionistas pela carnificina da Guerra Civil, poucos historiadores (caso haja algum) pensarão que tal era uma opção real em 1860. De igual modo, continuar com a NEP não era uma opção real para os soviéticos nos anos 20. Em 1921, os soviéticos viraram-se para a NEP para resolver problemas criados pelas políticas do «comunismo de guerra», em particular o desinteresse dos camponeses, provocado pelo confisco dos cereais. No entanto, em pouco tempo, a NEP gerou os seus próprios problemas.

Explicando porque é que os soviéticos abandonaram a NEP, o historiador E.H. Carr apontou três graves problemas. O primeiro é a ocorrência da chamada "crise das tesouras" em 1922-23, na qual a forte queda dos preços do trigo provocou penúria de alimentos, desemprego e sofrimento para os camponeses pobres e médios. O segundo foi a constatação por parte da maioria dos líderes soviéticos de que a NEP condenava a União Soviética a um longo período de atraso industrial, perspectiva aterradora e intolerável face à ameaça crescente de inimigos externos. O terceiro foi o açambarcamento da produção pelos camponeses, devido à queda dos preços agrícolas, provocando fome nas cidades. Por estas razões, a dependência do mercado e da iniciativa privada tornou-se insustentável.

Assim, foram problemas econômicos reais, bem como opções ideológicas, que levaram os líderes soviéticos a adotar novas políticas e aderir à propriedade estatal e à planificação centralizada. Nestas circunstâncias, chamar "utópica" à passagem para a propriedade estatal e planificação central é absurdo. Esta transição permitiu que a União Soviética se industrializasse num curto espaço de tempo, derrotasse a invasão nazista e reconstruísse rapidamente o país depois da guerra.

Além disso conseguiu ao mesmo tempo aumentar progressivamente o nível de vida dos trabalhadores soviéticos. Imaginar que a URSS poderia alcançar tais resultados, prosseguindo as problemáticas políticas da NEP, é simplesmente tomar os desejos por realidade. A explicação do colapso da URSS pelo atraso comporta um terceiro ponto fraco, que se revela quando examinamos as lições que se podem tirar desta explicação. É inteiramente apropriado avaliar a explicação através das lições que dela decorrem. Por exemplo, se um pastor morre ao cair de um penhasco na montanha, só um louco concluiria que se deve evitar o pastoreio e as montanhas. No entanto, se no momento do acidente, o pastor estivesse bêbado, uma pessoa razoável diria que se deve evitar beber quando se guardam ovelhas em encostas montanhosas. Alguns dos que subscrevem a tese do colapso da URSS devido ao atraso, concluem que a URSS deveria ter evitado a planificação central e seguido o caminho da China atual. Mas esta conclusão é tão sensata como evitar o pastoreio e as encostas montanhosas. No mínimo é irrefletida. Nem mesmo os próprios chineses tiram esta conclusão do colapso da União Soviética. Segundo afirma Arthur Waldron, "hoje, oficialmente, a China considera que nada de profundo ou fundamental estava errado na União Soviética, mesmo na segunda metade dos anos 80. De acordo com o discurso oficial, a falência da União Soviética continua a não ser atribuível a um amplo fenômeno sistêmico mas, pelo contrário, à falência muito específica do Partido Comunista da União Soviética."

Além disso, saber para onde conduziria em última instância a via chinesa e o que tal significaria para a classe operária, são questões que permanecem em aberto. A curto prazo, a via chinesa produziu crescimento econômico e aumentou os rendimentos da população urbana. No entanto, desde 2008, o declínio das taxas de crescimento econômico e as dificuldades causadas à economia chinesa pela estagnação do mercado mundial levantam dúvidas sobre a viabilidade futura deste modelo. Segundo o The New York Times, em março deste ano, o crescimento da China "desacelerou para o nível mais baixo em mais de uma década".

Em simultâneo, a classe operária chinesa está a pagar um preço elevado por uma via que se afasta progressivamente dos objetivos do socialismo. Durante a última década o desemprego não oficial nas cidades esteve sempre acima dos oito por cento. A parte do capital e investimento estrangeiros no total das vendas da China passou de 2,3 por cento em 1990 para 31,3 por cento em 2000. Como o investimento direto na China (124 bilhões de dólares em 2011) tem vindo a crescer anualmente, e apenas é superado pelo investimento estrangeiro nos Estados Unidos, a percentagem do capital estrangeiro é hoje inquestionavelmente maior do que em 2000. De resto, como constata um estudo recente, entre "os resultados inevitáveis do desenvolvimento capitalista da China", assinala-se o "aumento do desemprego, da desigualdade e da insegurança; cortes nos cuidados de saúde e educação pública; agravamento da opressão das mulheres; marginalização da agricultura; multiplicação das crises ambientais". Na medida em que a economia de mercado com orientação socialista é questionável enquanto via para o socialismo, também é questionável a conclusão que se retirou do colapso da URSS.

Em suma, a tese do atraso deve ser rejeitada por três razões. Primeiro, porque as forças produtivas da União Soviética não estavam subdesenvolvidas em 1985, por maior que fosse o seu atraso em 1917. Segundo, porque esta tese implica que a União Soviética deveria e poderia ter continuado a NEP. Esta ideia era insustentável à época e completamente fantasiosa em retrospectiva. Terceiro, se o caminho chinês ao socialismo é mais confiável do que o soviético ainda está por ser visto.

Crítica nº 2


            Um segundo tipo de críticas ao nosso livro surge a propósito da abordagem a Josef Stálin. Para alguns críticos, o fato de não se ter denunciado Stálin como um paranoico, um criminoso, um anti-semita, um demônio, um ditador e um assassino de massas, constitui uma falha fatal. Alguns críticos só ficaram satisfeitos se subscrevêssemos o que Domenico Losurdo chama de "uma lenda negra". Para eles, o fato de não termos condenado a crueldade de Stálin constitui uma omissão imperdoável. A estes gostaríamos de responder como Lenin respondeu a Maxim Gorky, quando este manifestou preocupação sobre "a crueldade das táticas revolucionárias". Lenin respondeu: "Que quer você? (...) Será possível agir humanamente num combate com tal ferocidade sem precedentes? Haverá aqui lugar à brandura e à generosidade? Estamos sob bloqueio da Europa, privados da esperada ajuda do proletariado europeu, vemos por todos os lados a contra-revolução rastejar contra nós como um urso. Que devemos fazer? Não devemos, não temos o direito de lutar e resistir? Desculpe, mas não somos tolos. (...) Com que critério avalia a quantidade de golpes necessários e excessivos no combate?"

A verdade é que não fazemos uma avaliação global de Stálin, porque consideramos que era um assunto demasiado importante para ser tratado de forma superficial num estudo dedicado a um tema diferente. Como qualquer historiador, levantamos uma questão específica – neste caso, as causas do colapso da União Soviética – e limitamo-nos a tentar responder a esta questão. Tratamos as ideias de Stálin e as suas políticas apenas na medida em que se relacionavam com a nossa exposição.

Mas porquanto a crítica à nossa abordagem de Stálin está ligada à nossa explicação do colapso, merece uma resposta. Aqui temos de fazer uma distinção. Como é sabido, existe uma corrente de pensamento, que remonta aos anos 20 e se estende até ao presente, segundo a qual a União Soviética entrou em declínio inexorável desde que rejeitou as ideias de Leon Trótski, sobre a necessidade de prosseguir a revolução permanente ao nível mundial e a inutilidade de construir o socialismo num só país. Deste ponto de vista, a União Soviética não construiu o socialismo, e o seu colapso representou apenas uma nota de rodapé ao exílio de Trótski. Só aqueles que aceitam estas premissas sobre a importância de Trótski e a ausência de socialismo na União Soviética podem ficar satisfeitos com a explicação trotskista da história soviética.

Todavia há outras visões sobre Stálin e o seu papel no colapso da União Soviética. Uma dessas visões sustenta que o colapso da URSS resultou das "deformações stalinistas", uma espécie de efeito retardado das políticas de Stálin. Esta tese reconhece que a União Soviética construiu o socialismo, baseado na propriedade pública e na planificação, que funcionou bem proporcionando crescimento econômico, defesa militar, emprego, segurança econômica, cuidados de saúde, educação e um nível cultural elevado para os trabalhadores. Não obstante, a luta contra o seu próprio atraso e contra as ameaças internas e externas, bem como outros desafios, conduziram a deformações antidemocráticas. Estas deformações manifestaram-se no «culto da personalidade, na sujeição autoritária de toda a atividade social à disciplina e controle do PCUS, e na subordinação de todo o pensamento e práticas científicas e culturais à ideologia política".

De acordo com esta visão, a economia planificada não constituiu um problema. O problema residia antes no legado do autoritarismo stalinista. O autoritarismo de Stálin teria minado as tentativas de descentralizar o controle e a responsabilidade, coartado a iniciativa e impedido a realização do potencial da economia socialista. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com a historiografia ocidental dificilmente estranhará que alguns autores culpem Stálin pelo colapso da União Soviética, uma vez que toda uma série de outros lhe atribuem a responsabilidade por praticamente todas as calamidades do século XX.

Uma figura tão complexa como Stálin, líder de um vasto país que atravessou numerosas crises durante um prolongado espaço de tempo, estava destinada a deixar um legado complicado. Assim, pode-se facilmente admitir a existência dos problemas referidos por aqueles que sustentam a teoria das deformações de Stálin. Por exemplo, na economia planificada, onde a natureza e a dimensão da produção são definidas a partir de cima, existe o problema endêmico da asfixia da iniciativa e da responsabilidade em baixo. A União Soviética debateu-se com este problema durante anos, e Cuba debate-se hoje com ele. Este problema não resulta apenas de Stálin. Por seu turno, sem lhe chamarmos "deformações stalinistas", reconhecemos que a dimensão e os métodos da repressão "deixaram inquestionavelmente uma herança de ressentimento, timidez, servilismo, remorso, e sabe-se lá que mais".

No entanto a história não acaba aqui. Ao avaliar-se o legado de Stálin deve-se distinguir as apreciações morais e políticas – ou seja, se determinadas atitudes e políticas foram boas ou más, justificadas ou injustificadas, positivas ou negativas – das apreciações históricas sobre os seus efeitos e consequências. Ambas são legítimas, mas a questão que temos perante nós é matéria de apreciação histórica. Ou seja: podem efetivamente as políticas de Stálin ser relacionadas com o colapso da URSS? Honestamente, aqueles que defendem a tese das deformações de Stálin pouco fizeram para levar a discussão do campo moral para o da explicação histórica. Stálin deixou uma herança contraditória no que respeita ao autoritarismo e democracia. Aqueles que subscrevem a tese das deformações de Stálin apenas vêem um lado, afirmando que Stálin minou a democracia socialista, desmoralizou e desmobilizou o povo soviético, e que isso, em última instância, socavou a eficiência e a produtividade do sistema socialista, conduzindo-o, a partir daí, ao colapso. Mas onde está a prova desta desmoralização e desmobilização? As grandiosas realizações do povo soviético, entre os anos 30 e os anos 50, a coletivização da agricultura, a rápida industrialização, o aumento do nível educacional e cultural do povo, a derrota da invasão de Hitler, a reconstrução do país em quatro anos, depois da devastação da guerra, dificilmente traduzem o trabalho de uma população desmoralizada e desmobilizada. Bem pelo contrário. Estas realizações exigem uma participação popular ativa. Aliás, um olhar sóbrio sobre o legado de Stálin tem de reconhecer que existem nele elementos de democracia e de participação popular, bem como de autocracia e repressão. A Constituição Soviética de 1936 simboliza esta herança ambígua.

Por um lado, apesar das promessas democráticas da Constituição, a União Soviética permaneceu um Estado em que o poder se concentrava no partido comunista e, de uma forma crescente, no seu líder, onde as nomeações para cargos oficiais e outras se faziam a partir de cima, e onde outras instituições, incluindo os sovietes e os sindicatos, tinham, no melhor dos casos, uma função consultiva. Por outro lado, a Constituição representou uma tentativa, pela primeira vez na história, sob condições favoráveis, de dar um significado à ideia da democracia socialista. A Constituição foi o resultado de dois anos discussão, em que largos segmentos dos trabalhadores, camponeses e outras camadas foram envolvidos num amplo debate nacional do projeto de documento, que foi seguido de um referendo nacional.

A Constituição alargou os direitos democráticos dos cidadãos soviéticos, levantando as restrições eleitorais aos indivíduos associados ao regime tsarista e, ao mesmo tempo que consagrou o papel exclusivo do partido comunista, também introduziu as candidaturas múltiplas, o sufrágio secreto e as eleições diretas. Partindo das constituições burguesas com uma perspectiva revolucionária, a Constituição soviética instituiu direitos econômicos, onde se incluíram: o direito ao emprego, férias pagas anuais, assistência médica gratuita, ensino gratuito até ao sétimo ano inclusive, assistência estatal às mulheres com muitos filhos e mães solteiras, licença de maternidade totalmente paga e acesso às maternidades, enfermarias e jardins-de-infância.[1]

A Constituição de 1936 refletiu ainda um outro legado democrático, designadamente a política soviética para as minorias nacionais. O historiador Terry Martin caracterizou a União Soviética como "o primeiro império do mundo com ação afirmativa". O que Martin quis dizer com isto foi que a União Soviética «criou não só dezena e meia de grandes repúblicas nacionais, mas também dezenas de milhares de territórios nacionais espalhados por toda a vastidão do país. Novas elites nacionais foram instruídas e promovidas para cargos de liderança no governo, escolas e empresas industriais desses novos territórios. Em cada território, a língua nacional adquiriu estatuto de língua oficial do governo. Em dezenas de casos isso implicou a criação de uma língua escrita, que não existia. O Estado soviético financiou a produção em massa de livros, revistas, jornais, filmes, óperas, museus, música tradicional e outras produções culturais em línguas não russas. Nada de comparável tinha sido tentado anteriormente (...) e nenhum Estado multiétnico igualou ulteriormente a escala da Ação Afirmativa Soviética."[2] Segundo um estudo de opinião, realizado em 1950-51 pelo Harvard Interview Project, que abrangeu centenas de cidadãos soviéticos, "a maioria esmagadora" dos inquiridos sobre a Constituição de 1936 concordou que as garantias estabelecidas sobre a igualdade das nacionalidades correspondiam de fato à realidade.[3]

A ambiguidade do legado autocrático e democrático de Stálin até se manifesta nas repressões dos anos 30. A campanha contra os trotskistas e sabotadores em 1937, que conduziu milhões à prisão e milhares à morte, correspondeu a um movimento de massas lançado nos sindicatos e nos locais de trabalho pelo alargamento da democracia. O líder dos sindicatos, Nikolai M. Chvérnik, lançou este movimento no sentido de aplicar nos sindicatos os direitos consagrados na Constituição de 1936, ou seja, eleições secretas com múltiplos candidatos, um maior envolvimento das bases e uma maior prestação de contas por parte das direções sindicais. Este movimento estava de mãos dadas com a campanha contra o culto dos líderes, pela erradicação dos dirigentes corruptos, dos oposicionistas dissimulados e outros "inimigos do povo", que desviavam fundos dos sindicatos, violavam as normas de segurança, sabotavam habitações, serviços sociais e a produção. Como resultado deste levantamento a partir de baixo, no final de 1937, "mais de um milhão e 230 mil pessoas foram eleitas em 146 sindicatos e em centenas de milhares de organizações sindicais e comités de empresa (...) O resultado final das eleições traduziu-se numa mudança radical de quadros. Mais de 70 por cento dos antigos comités de fábrica, 66 por cento dos 94 mil presidentes de comités de fábrica e 92 por cento dos 30.723 membros dos comitês plenários regionais foram substituídos".[4] O que aconteceu nos sindicatos e locais de trabalho em 1937 foi literalmente um movimento democrático a partir de baixo para afastar e punir determinados líderes sindicais. O historiador Wendy Goldman chamou-lhe uma "repressão democrática", e notou que esta "repressão não constituiu um ato contra o povo soviético realizado por uma 'entidade' maléfica, mas foi ativamente apoiada e difundida pelo próprio povo em todas as instituições".[5]

Em suma, se olharmos objetivamente para o legado de Stálin, não vemos ligações diretas entre Stálin, o autoritarismo, a desmobilização popular e o colapso da URSS. Tanto no enunciado da Constituição de 1936 como na política das nacionalidades e no movimento de democratização dos sindicatos de 1937, pelo menos, ao contrário de desmobilizar, Stálin mobilizou as massas. Aliás, se as políticas de Stálin tivessem tido o efeito de desmobilizar e desmoralizar o povo soviético, dificilmente a sua morte seria motivo de tão grande consternação, nem se esperaria que passados 50 anos a sua personalidade continuasse a ser venerada. No entanto, é precisamente isso que as sondagens mostram.[6]
Em suma, pode admitir-se com facilidade que o legado democrático de Stálin é ambíguo. No entanto, só uma visão muito unilateral e distorcida de Stálin poderá concluir que as "deformações" de Stálin desmobilizaram politicamente as massas trabalhadoras a tal ponto que foram a causa principal do colapso da URSS.


Uma terceira reação


             A terceira reação ao nosso livro não é propriamente uma crítica, mas antes uma pergunta, colocada nos seguintes termos: por que razão o partido comunista e a classe operária soviética não se opuseram às políticas de Gorbatchov, sublevando-se em defesa do socialismo? No livro abordamos esta questão (pp. 267-273). É certo que o fato de a resistência das bases não ter sido grande, nem maior o seu êxito, constitui o aspecto mais perturbador em todo o processo da dissolução da União Soviética. Mas por muito perturbador que seja, este fato em si e por si não permite saltar para a conclusão de que havia alguma coisa errada no socialismo soviético ou que o socialismo soviético frustrou as expectativas dos trabalhadores de uma forma fundamental.

Gorbatchov pretendia que se podia resolver os problemas do socialismo fazendo concessões aos imperialistas e incorporando ideias do capitalismo no socialismo. Parte disto passava pela introdução de aspectos da democracia burguesa, ao mesmo tempo que as instituições tradicionais da democracia socialista eram minadas e marginalizadas. Para se compreender a ineficácia da resistência da classe operária não precisamos de ir muito além disto. Os comunistas e trabalhadores soviéticos viram-se privados das vias tradicionais de expressão, ao mesmo tempo que o seu líder formal introduzia gradualmente ideias capitalistas, embrulhadas na noção de aperfeiçoamento do socialismo. Na nossa opinião, as coisas não tinham de se passar desta forma. Reformas diferentes e um processo diferente de reformas, que mobilizassem o partido comunista e a classe operária, poderiam produzir resultados diferentes. Isto havia sido tentado por Iúri Andrópov, mas o esforço foi de curta duração, devido à sua doença e morte.

Duas recentes visitas a Cuba e um estudo sobre as presentes reformas em curso, chamadas «atualização», reforçaram a nossa conclusão sobre o destino do socialismo soviético. Obviamente que a União Soviética e Cuba são dois países completamente diferentes, com histórias e situações muito diferentes. Uma diferença significativa foi o embargo econômico e comercial imposto pelos EUA a Cuba. Apesar de a União Soviética também ter passado por um bloqueio econômico durante duas décadas, o embargo a Cuba dura há mais tempo e o seu custo é relativamente mais elevado. Hoje, passados 50 anos, segundo estimativas moderadas, o embargo custou aos cubanos mais de 104 bilhões de dólares a preços correntes, e se considerarmos a desvalorização do dólar em relação ao ouro, esse valor sobe para 975 bilhões de dólares.[7] Sem o boicote, hoje, o nível de vida em Cuba poderia ser semelhante ao da Europa Ocidental.[8]

Não obstante as diferenças óbvias, Cuba e a União Soviética têm algumas características comuns. Ambas as economias se baseiam na propriedade pública e na planificação centralizada, dirigidas pelo partido comunista, e tanto a sociedade soviética em 1985 como a cubana em 2011 enfrentavam problemas similares, embora em graus diferentes. Por exemplo, ambas tinham duas moedas, uma convertível em divisas internacionais e outra interna. A divisa soviética, interdita à maioria dos cidadãos, estava limitada aos turistas, diplomatas e alguns outros representantes, e era usada apenas nas lojas em divisas. Em Cuba, no entanto, a moeda convertível não é ilegal, e muitos cubanos auferem legalmente rendimentos em pesos convertíveis, por trabalharem na indústria do turismo, sob a forma de prêmios em certas outras entidades, ou ainda provenientes de remessas de familiares emigrantes.

A existência de duas moedas gera mais problemas em Cuba do que no caso da União Soviética. A grande disparidade entre o valor do peso (CUP) e do peso convertível (CUC), na ordem de 25 para 1, criou uma série de problemas, incluindo uma crescente desigualdade entre aqueles que têm acesso à moeda convertível e os que não têm, e uma fuga de cérebros de profissões sem salários em divisas para aquelas que permitem esse acesso, como é o caso do turismo. Conduzir um táxi pode proporcionar gorjetas em divisas de valor superior aos rendimentos de um professor. Isto é claramente desmoralizador e ineficiente. Um outro exemplo de um fenômeno presente nas duas sociedades é a segunda economia, ou mercado negro. Na União Soviética a segunda economia constituía um problema maior do que em Cuba. Na União Soviética a segunda economia existiu durante um período mais longo, estava mais espalhada e desenvolvida, e ligada com frequência a minorias nacionais e à "máfia" organizada.[9]

Em certos aspectos, os problemas de Cuba e da União Soviética [nos anos 80] são semelhantes: deficiências na produtividade e eficiência, qualidade insuficiente dos bens de consumo, falta de iniciativa e de sentido de propriedade e responsabilidade no local de trabalho, difusão insuficiente das tecnologias computacionais, etc. Além disso pode-se encontrar facilmente semelhanças entre as soluções propostas por Iúri Andrópov, em 1983 (e mesmo entre as políticas iniciais de Gorbatchov), e o programa cubano de reformas de "atualização", proposto em 2011. Por exemplo, nos dois casos as reformas visavam aumentar a eficiência, a produtividade, a motivação e a qualidade através da recompensa do esforço, da descentralização do controle e da responsabilidade, do desenvolvimento de empresas mistas com capitais estrangeiros, de incentivos às cooperativas e da concessão de maior latitude à iniciativa privada.

Mas os processos na União Soviética e em Cuba diferem de forma flagrante. Em Cuba o processo de reformas envolveu os comunistas de base e os trabalhadores de uma forma muito mais ampla do que na União Soviética. Em Cuba, entre o desenvolvimento das orientações da reforma em 2010 até à sua implementação em 2014, houve todo um processo que implicou o envolvimento das massas e a construção de um consenso de massas.

O processo começou entre dezembro de 2010 e fevereiro de 2011, com debates com o povo em geral, seguiram-se debates no partido em todas as províncias, e por fim debates no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC) em abril. No total realizaram-se 163.079 reuniões, em que estiveram 8.913.828 participantes. Destes debates resultou um importante conjunto de alterações: "O documento original continha 291 linhas de orientação, das quais 16 foram incorporadas noutras, 94 mantiveram a sua redação, o conteúdo de 181 delas foi modificado e foram incorporadas 36 novas linhas de orientação, para um total de 311 no atual projeto. (...) Aproximadamente mais de dois terços das linhas de orientação, exatamente 68 por cento, foram reformulados." [10] O debate das linhas de orientação decorreu ainda através de cartas publicadas no jornal Granma, em programas de rádio, em blogs na Internet e nos sindicatos.[11] Um observador anotou: "O elemento-chave aqui é que o projeto da nova lei laboral implica um processo de consulta com a Central dos Trabalhadores de Cuba (CTC) tão detalhado e extensivo que os sindicatos têm de fato o poder de veto".[12]

Na União Soviética, Iúri Andrópov iniciou as reformas econômicas com debates nos locais de trabalho. Todavia, para Gorbatchov, os debates com as bases sobre as mudanças foram sobretudo uma oportunidade para promover a sua imagem pública. Os amplos debates, o estímulo à crítica e a construção de consensos estiveram praticamente ausentes no processo de reformas de Gorbatchov. Se tivesse sido de outro modo, será que hoje nos interrogaríamos sobre onde estavam os comunistas soviéticos e os trabalhadores?

Mas se os dois tipos de críticas ("o atraso soviético" e "as deformações de Stálin") não são convincentes, por que razão continuam a ser tão populares? Na nossa opinião a razão da popularidade destas explicações é que elas decorrem e dependem da omnipresente ideologia do anti-stalinismo e do anticomunismo. O anticomunismo e o anti-stalinismo não são meras discordâncias com o sistema socialista ou com as políticas de Stálin, antes consistem na apresentação deste sistema e deste homem como o pior mal do mundo. Para a maioria dos intelectuais ocidentais o dogma de que "Stálin é um monstro" não é susceptível de discussão. É um axioma. Pior, é um tabu. É a chave-mestra que dá acesso à família de autores admitidos pela ideologia dominante. Os acadêmicos dos EUA, mesmo aqueles com pontos de vista não ortodoxos, inscrevem rotineiramente referências hostis a Stálin nos seus trabalhos, mesmo quando não incidem sobre a história da União Soviética, para assim garantirem a sua aceitação política.

A razão de o anti-stalinismo continuar a ser a pedra-de-toque merece mais atenção do que tem tido. Recentemente, acadêmicos como Domenico Losurdo e Grover Furr[13] lançaram luz sobre esta questão. A circunstância de a demonização de Stálin ter o apoio de toda a esquerda, graças a Trótski e a Khruchov, é seguramente um dos fatores. Uma outra razão é o facto de Stálin ser o símbolo personificado da URSS entre 1924 e 1953, o período do êxito da construção do socialismo, e também o período em que o Estado soviético era o maior inimigo do imperialismo. Seja qual for a razão, para os marxistas, como são alguns dos nossos críticos, condescender com estereótipos anti-Stálin e polemizar na sua base, deve ser entendido como uma concessão oportunista à pressão da ideologia da classe dominante. Evidentemente que a rejeição do anti-stalinismo não equivale à beatificação de Stálin, a um amontoado de elogios à sua pessoa, ou ainda menos ao escamoteamento dos problemas associados à sua liderança. Significará antes, um trabalho acadêmico paciente, que use os mesmos critérios que são requeridos para avaliar qualquer líder do século XX.

Conclusão


            As principais críticas levantadas contra os argumentos do Socialismo Traído não resistem a um escrutínio rigoroso. A ideia de que a União Soviética estava condenada por um defeito congênito, a saber, o atraso das forças produtivas, agrada sobretudo àqueles que sonham com um avanço gradual para o socialismo, e àqueles que pensam que os chineses descobriram a estrada de ouro para o futuro. No entanto, tal ideia implica que se ignore os problemas gerados pela NEP nos anos 20 e na China hoje, e significa subestimar as difíceis opções que os soviéticos tiveram de fazer nos anos 20 e 30, bem como os tremendos progressos que fizeram para superar o atraso.

A ideia de que o colapso da URSS em 1991 se deveu ao autoritarismo de Stálin nos anos 30 assenta numa montanha de preconceitos contra Stálin e numa leitura unilateral do seu legado que ignora os seus marcados elementos democráticos. Finalmente, a ineficácia da resistência dos comunistas de base e dos operários à destruição do socialismo não prova a existência de problemas profundamente enraizados do socialismo soviético. Mostra no entanto que a destruição da propriedade socialista, da planificação, dos benefícios sociais e do internacionalismo exigiram a erosão simultânea da autoridade do partido comunista e das instituições da democracia socialista. Se alguma coisa boa adveio do colapso da URSS foi o fato de Cuba parecer ter aprendido a lição.



Notas

[1] Leonard Schapiro, The Communist Party of the Soviet Union (New York: Vintage Books, 1971), 409; Kenneth Neill Cameron, Stalin: Man of Contradiction (Toronto, NC Press Limited, 1987), 80-81.

[2] Terry Martin, The Affirmative Action Empire: Nations and Nationalism in the Soviet Union, 1923-1939 (Ithaca and London: Cornell University Press, 2001), 1-2.

[3] Martin, 387-389.

[4] Goldman, 14.

[5] Goldman, 19.

[6] Richard Pipes, “Flight from Freedom: What Russians Think and Want,” Foreign Affairs (May/June, 2004), 14.

[7] Cuba vs Bloqueo: Relatório de Cuba sobre a Resolution 65/6 da Assembleia Geral das Nações Unidas intitulado “Necesidad de poner fin al bloqueo económico, comercial y financiero impuestopor los Estados Unidos de América contra Cuba” (July 2011), 54.

[8] Interview of Manual Yepe, Havana, Cuba, February 18, 2014.

[9] Interview of Marta Nunez, Havana, Cuba, February 18, 2014.

[10] “Information on the results of the debate on the Economic and Social Policy Guidelines for the Party and the Revolution”, traduzido por Marce Cameron, 2.

[11] Steve Ludlam, “Cuba’s Socialist Development Strategy,” Science & Society 76, no. 1 (January 2012), 47.

[12] Ludlam, 51.

[13] Domenico Losurdo, Staline: Histoire et Critique D’Une Légende Noire and Grover Furr, Khrushchev Lied (Kettering, Ohio: Erythros Press and Media, 2011).