Cartaz da época da revolução cultural |
Fui ler a “reflexão” de Rosana com muita expectativa. Especialmente porque, em um debate comigo no Facebook, ela, como é típico de acadêmicos famosos, jogou seu currículo e o fato de ler em Mandarim como um argumento de autoridade. Mesmo considerando a comparação do bolsonarismo com a Revolução Cultural algo sem sentido, esperava um artigo com o mínimo de solidez e capacidade argumentativa. Não é o caso. O texto de Rosana é um caso perfeito de ausência básica dos requisitos fundamentais da honestidade intelectual. Um texto com erros históricos, sem fontes, afirmações não provadas, omissão de informações importantes, etc.
Bem mais do que escrever uma história alternativa da Revolução Cultural Chinesa, pretendo mostrar como a professora que lê em Mandarim produziu um texto que, do ponto de vista da honestidade intelectual, é uma aberração completa e absoluta. Vamos ao escrito.
A primeira coisa a ser dita é que o Brasil, apenas nos últimos anos começou a demonstrar interesse pela realidade chinesa. Aumentou o número de grupos de estudos, laboratórios de pesquisa, publicações no mercado editorial, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre a China. Esse movimento de maior interesse da intelectualidade acadêmica e do establishment cultural brasileiro pela realidade chinesa é um reflexo, principalmente, da presença econômica e geopolítica cada vez maior do gigante asiático no Brasil e na América Latina. A despeito disso, nossa formação cultural profundamente marcada pelo colonialismo europeu e estadunidense é resistente e a imensa maioria dos brasileiros, inclusive os estudantes universitários e professores, é total ou parcialmente ignorante quando o assunto é China ou a realidade de qualquer país fora do eixo Europa-EUA-Japão.
Nesse sentido, qualquer reflexão, especialmente uma polêmica, sobre a China tem a função de indicar as fontes das informações proferidas. É um caso de irresponsabilidade intelectual escrever algo sobre a China sem oferecer ao leitor a oportunidade de se aprofundar no tema ou conferir as fontes usadas pelo autor, dando-lhe a oportunidade de fazer seu próprio julgamento histórico sobre o assunto. Essa é a primeira grande falha e sintoma de desleixo intelectual do texto de Rosana Pinheiro-Machado. A antropóloga não coloca à disposição do leitor qualquer escrito para consulta – sequer os artigos dela são anexados como fonte e recomendação. Em alguns momentos do texto, inclusive, a coisa é tão ridícula que, se um aluno meu do Ensino Médio cometesse o mesmo erro em um trabalho, provavelmente perderia pontuação. Um exemplo é este trecho:
“Muito antes de o Twitter existir, no quesito “incentivar o ataque ao establishment”, Mao foi um precursor da tática de detonar a imprensa, jornalistas e editores com frases de impacto. Dizia que os intelectuais do país eram ignorantes.”
Mao dizia isso onde? Cadê o trecho? Em qual obra posso consultar a fala completa? Meus alunos sabem que, ao citar a posição de um teórico ou personalidade política, é recomendável buscar trechos que não mutilem o sentido original e, em caso de recusa de citação direta, intentando resumir o pensamento da pessoa referenciada, é necessário indicar com precisão a obra, a página e o ano de publicação para o leitor conferir se a interpretação dada ao texto é fidedigna. Isto é básico. O texto de Rosana é lotado de supostas posições políticas e frases que seriam de Mao e da Revolução Chinesa sem nunca fazer uma citação direta ou indicar a fonte. Será que não existem livros de metodologia da pesquisa científica em Mandarim para a nossa antropóloga aprender o que um bom aluno de Ensino Médio sabe? Mas prossigamos.
A nossa especialista em China também fornece algumas informações erradas sobre a história chinesa. A autora diz o seguinte: “Na China, a Revolução Comunista de 1949 tinha o culto à personalidade como um eixo fundamental, valorizando a simplicidade de Mao Zedong. Isso era fundamental para estancar a polarização entre as guardas brancas e vermelhas, que crescia desde a queda da dinastia Qing na virada do século 19”. O problema é que o Partido Comunista da China foi fundado em 1921 e o Exército Popular de Libertação em 1927. Na virada do século XIX não existiam guardas vermelhos. A informação, simplesmente, está errada. E só deus sabe o que significa essa suposta polarização entre guardas vermelhos e brancos e qual a relação entre o “culto à personalidade” e a “simplicidade” de Mao para estancar essa polarização (existe a possibilidade remota de Rosana estar se referindo aos exércitos particulares de “senhores da guerra”, que se identificavam pela cor das bandeiras, mas é impossível saber se é isto que a antropóloga quer dizer). Entenda quem puder.
Em outro momento do texto, afirma que a Revolução Cultural teve como principal alvo os professores. Isto é falso. O principal alvo desse processo político chinês foram os membros do partido e do Estado (na pequena bibliografia que vou recomendar ao final deste escrito, será possível conferir estas informações). Em seguida, diz que “no total, contabiliza-se que 300 a 700 mil intelectuais foram demitidos por viés ideológico”. Quem contabiliza? O que significaria ser “demitido por viés ideológico? Quem ordenava as supostas demissões? Mais uma vez, entenda quem puder. Ainda acrescento que a autora usou uma linguagem típica de Bolsonaro para facilitar a associação entre os dois fenômenos históricos. Desonestidade pouca é bobagem.
Para cumprir sua missão de igualar o bolsonarismo e o complexo processo da Revolução Cultural, Rosana realiza uma eficiente “arte da tesoura”. Não sabe o que é a arte da tesoura? É bem simples. Consiste em retirar dos fenômenos as “partes” que não se encaixam na explicação e hipervalorizar as que são funcionais.
A Revolução Cultural, dentre os vários processos que a marcaram, tinha como meta eliminar a desigualdade entre cidade e campo, indústria e agricultura, trabalho intelectual e manual. Foi um movimento com forte impulso democratizador dos ambientes de produção e da autogestão operária. Também foi um processo de valorização do camponês e do trabalhador, em detrimento do burocrata do partido e do intelectual preso a hábitos pequeno-burgueses e antigos costumes. Por exemplo, diz o historiador inglês Perry Anderson sobre um dos momentos fundamentais da Revolução Cultural:
Eram ideias utópicas [a Revolução Cultural] para qualquer sociedade da época, quanto mais para uma tão atrasada como a chinesa. No entanto, não se tratava de medidas cosméticas. A paralisação de atividades de colégios e universidades a fim de possibilitar o envio de 17 milhões de jovens da cidade para a consecução de trabalhos agrícolas ao lado dos camponeses foi um processo mais característico e duradouro que as perseguições no período. Executada sem violência, frequentemente com entusiasmo, atendia a outros objetivos (ANDERSON, 2018, no prelo, p. 34 – grifos nossos).
Para conseguir tornar aparentemente lógica a comparação entre a Revolução Cultural e o bolsonarismo, buscando realizar uma comparação de todo formalista, esse tipo de fenômeno do período chinês tem que ser excluído. Assim como tem que ser excluído o papel das mulheres na luta contra os costumes patriarcais ainda presentes, ou a luta dos camponeses contra uma mentalidade e práticas de mando autocrático herdados da era feudal. Toda dimensão produtiva de autogestão e de democracia direta – “devolver o partido para as massas”, como dizia Mao – tem que ser excluída. Parece que a Revolução Cultural chinesa foi um movimento apenas no “âmbito” da cultura. Mas a arte da tesoura prossegue.
Em vários momentos do texto, para aproximar Mao e Bolsonaro, Rosana diz que “se o culto à personalidade e nacionalismo são características comuns a muitos regimes autoritários, é no campo da educação que temos visto o Brasil repetir a história chinesa”. Mao e Bolsonaro são nacionalistas. Ponto. A antropóloga poderia explicar que, quando triunfa a Revolução Chinesa, em 1949, mais de 100 anos de colonialismo tinham destruído a China e a transformado na nação mais pobre do mundo. Poderia explicar que a Segunda Guerra Mundial, para a China, foi essencialmente uma guerra de libertação nacional contra o colonialismo japonês. Poderia mencionar os casos de racismo colonial praticados pelas potências imperialistas, como exibir em lugares públicos da China placas avisando que era proibido a entrada de “cães e chineses”. Poderia, especialmente, falar que o nacionalismo revolucionário defendido por Mao e pelo Partido Comunista Chinês não tinha nada de xenofóbico e exaltava a união entre os povos, sendo Mao e o maoísmo olhados como exemplo e com adoração por minorias nacionais oprimidas desde os guetos dos EUA até a África. Mas, para comparar Bolsonaro e Mao, nada disso pode ser dito.
Eu poderia continuar citando indefinidamente vários trechos do texto de Rosana onde ela faz afirmações erradas, sem fontes e sem qualquer tipo de conexão lógica, como esta: “A Revolução Cultural foi genocida: assassinou e estuprou em massa, uniformizou as pessoas e aniquilou o “eu” dos sobreviventes”, mas os exemplos acima, creio, bastam para mostrar como esse escrito é um exemplo de como não escrever um texto minimamente sério. Vamos caminhar para a conclusão.
Um escrito como esse, sobre qualquer tema, que não falar mal de alguma experiência socialista, seria desprezado. Mas, quando a questão é ser anticomunista, todo tipo de absurdo, desleixo e desonestidade intelectual é, não só tolerada, como louvada. Ao compartilhar o artigo da nossa antropóloga, o professor Ruy Braga, por exemplo, quando recebeu um questionamento sobre a comparação absurda que fundamenta o texto, respondeu do alto da arrogância acadêmica que Rosana estuda em Mandarim e citou seu currículo. Pronto. Todo tipo de boçalidade, nesse caso, se torna perdoável. O problema é que, às vezes, ser poliglota nada mais é do que se ter uma língua a mais para escrever coisas inúteis.
O anticomunismo é uma praga. É, como defendi em vídeo recente no meu canal no YouTube, uma arma da classe dominante para, neste momento de crise política e econômica mundial gerar uma comunistofobia na classe trabalhadora, evitando que ela busque um programa radical de ruptura com a ordem burguesa [2]. Intelectuais acadêmicos, mesmo os ditos marxistas, prestam todo dia sua referência à ideologia dominante, repetindo os mitos anticomunistas porque isso rende muito prestígio, dinheiro, espaço nos monopólios de mídia e convites para formular políticas públicas [3].
Esse tipo de postura oportunista e cretina é compreensível. Como diriam os Racionais MC’s, “vários patrícios falam merda para todo mundo rir! Haha! Para ver branquinho aplaudir”. Incompreensível e inaceitável é um escrito tão mal feito e desleixado. É possível ser anticomunista com alguma qualidade. Talvez a explicação seja que o bolsista do PIBIC está de férias e não pôde revisar. Estagiário é folgado e só pensa em férias. Mas, ao contrário da China atual, onde se fortalecem os direitos trabalhistas, no Brasil a “mamata” vai acabar. Bolsonaro é presidente. Viva a liberdade, abaixo o maoísmo.
[1] – https://theintercept.com/2018/11/15/bolsonarismo-repete-revolucao-cultural-china/?fbclid=IwAR3QPmwbSeSQSFXMMj0t8PttERCa5TJs9pX28tTHgIqqgmcSv2WTlqFdf5c
[2] – O anticomunismo: como ganhou força e como combater: https://www.youtube.com/watch?v=7be2UFZfFXQ
[3] –http://makaveliteorizando.blogspot.com/2018/11/o-anticomunismo-de-esquerda.html
Dicas de livros.
Primeiro, o livro que citei no corpo do texto de Perry Anderson "Duas Revoluções: Russa e Chinesa - Boitempo Editorial, 2018.
Dois clássicos livros do Wladimir Pomar: "O Enigma chinês: capitalismo ou socialismo" - Editora Alfa-Omega, 1987; e "A Revolução Chinesa" da Coleção "As Revoluções" da Unesp, 2004.
O clássico de Giovanni Arrighi "Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI" (Boitempo Editorial, 2008).
Dois livros igualmente clássicos do Domenico Losurdo "Fuga da história? A Revolução Russa e Chinesa vistas de hoje" - Editora Revan, 2004; e "A luta de classes: uma história política e filosófica" da Boitempo Editorial, 2015.
Por fim, recomendo as publicações da biblioteca do Laboratório de Estudos em Economia Política da China: http://www.ie.ufrj.br/labchina/?page_id=2954
Lembrando que isso é apenas uma pequena introdução sobre o gigantesco e complexo tema que é estudar a realidade Chinesa.
Caraleooo, que vrauu foi esse meu consagrado
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ResponderExcluirSempre trazendo reflexões muito massas! Agora, Jones, ainda dentro desse anticomunismo vinculado à Revolução Chinesa e à experiencia maoísta, como voce enxerga essa ideia de Mao ter sido um "ditador brutal e assassino em massa"? No sentido de o que se aplica disso e em que condições. Abraço!
ResponderExcluirEu li o artigo dela e ainda brinquei colocando um clipe do living colour "Cult of Personality", e depois vi que ela tuitou dizendo que as pessoas estavam criticando a matéria dela.
ResponderExcluirCuriosamente, o livro do Perry Anderson citado, possui um texto adicional da Rosana Pinheiro Machado. Ainda não li, mas eu realmente estou curioso. A Boitempo tem perdido rigor? Ou o petismo da Boitempo é que produz isso?
ResponderExcluirVeja: https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/duas-revolucoes-russia-e-china-839
Curiosamente, o livro do Perry Anderson citado, possui um texto adicional da Rosana Pinheiro Machado. Ainda não li, mas eu realmente estou curioso. A Boitempo tem perdido rigor? Ou o petismo da Boitempo é que produz isso?
ResponderExcluirVeja: https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/duas-revolucoes-russia-e-china-839
Parabéns pelo texto! Essencial para o período em que vivemos.
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