Foto do último congresso do PCCh |
A
ascensão da China à hegemonia global é hoje um quase consenso entre acadêmicos,
políticos e jornalistas de todo mundo. A retórica do aparentemente inevitável
século chinês é admitida inclusive por lideranças norte-americanas[1]. O fenômeno do crescimento
econômico chinês já foi chamado de o mais impressionante da história moderna[2],
mesmo isso sendo equivocado, afinal o desenvolvimento soviético entre os anos
30 e o início da Segunda Grande Guerra continua sendo o maior e mais
impressionante exemplo de desenvolvimento econômico num curto tempo partindo de
uma base precária e sem praticar colonialismo.
De
toda forma, depois da derrubada da União Soviética e superada a histeria com o
crescimento do Japão, a expectativa dos anos 90 era uma hegemonia inconteste
por longo tempo dos EUA. Poucos anos depois essa certeza simplesmente sumiu. A
China está entre os países que mais cresce no mundo, provoca um forte e intenso
realimento do comércio mundial (especialmente na Ásia), está próxima de tornar-se a maior detentora
de ciência e tecnologia do mundo, já forma mais técnicos e engenheiros que os
EUA, é uma investidora global que em poucas décadas pode ser a maior exportadora
de capital do mundo, promove uma readequação das instituições de
governança global e promete nos próximos vinte ou trinta anos ser o maior
mercado consumidor do mundo[3].
É
evidente, porém, que a ascensão chinesa não vai acontecer sem resistência e
luta. No campo da luta ideológica,
a peleja contra a ascensão chinesa se combina com o combate ao comunismo
e num só cavalo de batalha temos a articulação de sinofobia, anticomunismo e
orientalismo. A produção do conhecimento, que nunca foi neutra, não escapa a essa
gigantesca batalha ideológica, e as produções
ocidentais (produções acadêmicas, filmes, documentários, músicas etc.) sobre a
China estão enviesadas de mitologias políticas que buscam evitar um deslumbre
pelo desenvolvimento chinês.
O
objetivo desse ensaio, sem qualquer pretensão de originalidade, é apresentar
alguns mitos e simplificações sobre a estratégia de desenvolvimento chinesa, procurando explanar as
análises que consideramos corretas e demonstrar que a ascensão chinesa tem como
principal pressuposto e explicação a conquista da soberania nacional através da
grande Revolução de 1949 e uma estratégia de desenvolvimento balizada na
planificação econômica, na propriedade pública dos meios de produção em setores
estratégicos da economia, na aquisição e desenvolvimento prioritário da ciência
e tecnologia e no controle e coordenação dos fluxos de capital, e que a imagem
da China como neoliberal corresponde a uma grande guerra ideológica que visa
encobrir esses elementos.
A
China entre o mito e a verdade.
Quando o tema é a china é comum afirmar que
todos os trabalhadores estão em condição de semi-escravidão, numa situação de
trabalho despida de quaisquer direitos trabalhistas e regulação estatal e com
média de tempo de trabalho de 16h[4].
Essa suposta
situação laboral é associada ao chamado neoliberalismo chinês: a ideia de que
com as reformas de Deng a China aderiu ao neoliberalismo[5]; esse neoliberalismo é
comprovado pela participação predominante do capital estrangeiro no
desenvolvimento chinês[6]; o neoliberalismo e o
domínio do capital estrangeiro prova que a China só pôde crescer depois de
abandonar a revolução chinesa e o maoísmo[7]; essa abandono do maoísmo
significa que a China é hoje um país capitalista como qualquer outro[8].
Nas análises correntes fica na penumbra o
fato de que a China é um país de dimensões continentais que possui mais de um
bilhão de habitantes e comporta em sua estrutura produtiva diversos processos
de trabalho e relações de produção heterogêneas. Os trabalhadores
chineses migrantes que estão ocupados nas Zonas Econômicas Especiais (ZEEs)
estão realmente sujeitos à níveis de exploração odiosos e condições de
trabalhado especialmente degradantes. Mesmo com todo sensacionalismo dos
monopólios de mídia, não é uma distorção total as reportagens que mostram as
condições de vida horríveis nas ZEEs.
As
condições de trabalho e níveis de exploração chamam a mente um processo de
acumulação originária com a conversão de ex-camponeses em trabalhadores
assalariados-urbanos. Contudo, é de uma extrema ingenuidade atribuir as taxas
de crescimento chinesas e as conquistas do seu desenvolvimento econômico e
científico tecnológico a esse padrão de exploração, afinal, como bem lembrou
Trotsky falando da URSS, exploração em níveis brutalizantes existe em diversos
países capitalistas
O mundo burguês começou por
fingir que não via os êxitos econômicos do regime dos sovietes, que são a prova
experimental da viabilidade dos métodos socialistas. Perante a marcha, sem
precedentes na História, do desenvolvimento industrial, os sábios economistas a
serviço do capital ainda tentam muitas vezes manter profundo silêncio, ou então
se limitam a relembrar “a excessiva exploração” dos camponeses. Perdem assim
uma excelente ocasião de nos explicar por que razão a exploração desenfreada
dos camponeses, na China, no Japão e na Índia, nunca provocou um
desenvolvimento industrial acelerado, nem mesmo em grau diminuto, comparado ao
da U.R.S.S. (TROTSKY, 1980, p.5).
E
Ao contrário do que se acredita, a
característica mais atraente da RPC [República Popular da China] para o capital
estrangeiro não foi apenas sua imensa reserva de mão de obra barata; há mais
reservas como essa pelo mundo afora, mas em nenhum lugar atraíram tanto capital
quanto na China. A característica mais atraente, como argumentaremos, foi a
elevada qualidade dessa reserva em termos de saúde, educação e capacidade de
autogerenciamento, combinada à expansão rápida das condições de oferta e
demanda para a mobilização produtiva dessa reserva dentro da própria China
(ARRIGHI, 2008, p. 357).
Mas
essa não é a questão central. Através de uma cuidadosa operação ideológica de
encobrimento da realidade chinesa, a ideologia dominante procura ocultar a
diversidade de processos de trabalho e relações de produção no país e
transformar em um exemplo de “liberdade de contrato” (no sentindo de não haver
legislação trabalhista) um dos países com maior controle estatal da atividade
produtiva no mundo. vejamos.
Nos últimos trinta anos os salários na China
têm tido ganhos reais e uma tendência quase ininterrupta de aumento. Isso é
mais significativo ainda se consideramos que no mundo todo a tendência é o
reverso: perda do poder de compra e desvalorização dos salários. O número de
empregos pouco qualificados, de simples manufaturas, também vem reduzindo-se
com a crescente ampliação do domínio tecnológico da China e sua
estrutura produtiva industrial cada vez mais moderna[9].
O padrão de empregos nas zonas especiais com
vigência da superexploração da força de trabalho também vem reduzindo-se. Isso
por uma série de motivos. O primeiro deles é que o Partido Comunista Chinês
realiza um gigante e ambicioso projeto de redução das desigualdades regionais
na China com a interiorização do desenvolvimento para o oeste e a supressão do
antagonismo campo/cidade, a ampliação da urbanização e o acesso aos modernos
equipamentos de consumo coletivo[10]. Esse
processo de urbanização está reduzindo em ritmo acelerado o número de
trabalhadores migrantes que precisavam sair da sua aldeia para tentar ganhar a
vida na cidade e se submeter aos baixos salários e horríveis condições de
trabalho.
O
segundo elemento é que a China passa por uma mudança de estratégia de
desenvolvimento de extensivo, focado em grande volume de exportações com o
ciclo do capital fechando predominantemente fora, para um intensivo, com papel preponderante do mercado interno e do
consumo doméstico[11]. Aumento contínuo dos salários, facilitação do
crédito para o consumo popular, ampliação dos direitos sociais como a
instituição de um sistema de seguridade social universal[12] (também na contramão da
tendência mundial que é a destruição de direitos sociais e econômicos) e o
maior rigor do Estado com as condições de trabalho são parte desse processo de
fortalecimento de um mercado interno capaz de sustentar logos ciclos de
acumulação e expansão econômica[13].
Junte a isso às complexas relações
de propriedade que existem na China e que são bem difíceis de categorizar pela
tradição marxista. Arrighi (2008) nos fala dos trabalhadores das Empresas de Aldeias e Municipios (EAMs), onde
a propriedade pertence aos trabalhadores das aldeias ou municípios (propriedade
coletiva), mas é administrada pelo PCCh (controle do processo produtivo apartado
dos produtores diretos). Percentuais dos seus lucros devem ser reinvestidos na
produção e no melhoramento técnico e produtivo; outra porcentagem aplicada no
custeio de direitos sociais como educação, aposentadorias etc. (consumo
coletivo da riqueza socialmente produzida); e outra porcentagem dos lucros é
redistribuída entre os trabalhadores da empresa como forma de salário.
A
propriedade não é privada, é coletiva, mas o controle dos processos de trabalho
não está nas mãos do produtor
direto, apesar de parte significativa da riqueza produzida ser socialmente
consumida. Ao mesmo tempo, essas empresas operam num ambiente de mercado
competitivo. Definir essas relações como “capitalistas” ou “socialistas” seriam,
em última instância, simplificá-las em sua complexidade. Diz o autor:
O
resultado foi o crescimento explosivo da força de trabalho rural envolvida em
atividades não agrícolas: de 28 milhões de pessoas em 1978 para 176 milhões em
2003, tendo grande parte desse aumento ocorrido nas EAMs. Entre 1980 e 2004, as
EAMs criaram quatro vezes mais empregos do que se perdeu em emprego público e
urbano coletivo. Embora entre 1995 e 2004 o aumento do emprego nas EAMs tenha
sido bem menor que a redução do emprego público e urbano coletivo, no fim do
período as EAMs ainda empregavam duas vezes mais trabalhadores do que todas as
empresas urbanas estrangeiras, privadas e de propriedade conjunta somadas (...)
Em 1990, a propriedade coletiva das EAMs foi atribuída a todos os habitantes da
cidade ou aldeia. Entretanto, cabia aos governos locais nomear e demitir
administradores ou delegar essa responsabilidade a algum órgão governamental. A
alocação dos lucros das EAMs também foi regulamentado, tornando obrigatório que
mais da metade deles fosse reinvestido na própria empresa, a fim de modernizar
e expandir a produção e aumentar as verbas destinadas à assistência social e
aos prêmios, e a maior parte do que sobrasse fosse empregado em infraestrutura
agrícola, prestação de serviços tecnológicos, previdência e assistência social
públicas e investimentos em novas empresas (...) boa parte do crescimento
econômico chinês pode ser atribuído à contribuição das EAMs para o
reinvestimento e a redistribuição dos lucros industriais nos circuitos locais e
para seu uso em escolas, clínicas e outras formas de consumo coletivo (ARRIGHI,
2008, p. 367-369).
Além
disso, as generalizações sobre a situação da força de trabalho nas zonas
especiais escondem as condições diferencias nas empresas estatais. É amplamente
conhecido o maior nível salarial e as melhores condições de trabalho nas
empresas estatais e como historicamente a seguridade social no modelo de
transição socialista chinês deixou sob responsabilidade das empresas a política
social com seus trabalhadores. A força de trabalho empregada nas empresas
estatais acaba gozando de uma política social diferenciada e de níveis de
participação nas decisões políticas de organização dos processos de trabalho
muito maiores[14].
Mas o setor estatal chinês não é
cada dia menor devido à adesão ao neoliberalismo? A coisa não é bem assim.
A
noção de que a China aderiu ao neoliberalismo abrindo a economia, abandonado a
regulamentação estatal, planificação econômica e da propriedade pública dos
meios de produção e confiando ao capital estrangeiro o controle da dinâmica de
acumulação não corresponde à realidade.
As reformas de Deng tiveram como principal
objetivo aumentar em ritmo acelerado a competitividade na economia chinesa,
procurando fazer uma seleção: acabando com as empresas não competitivas e
forçando processos de reestruturação das que queriam sobreviver. As reformas do PCCh acabaram com o
subsídio para empresas deficitárias, forçaram uma redução de custos, aumentaram
a preocupação e investimento em tecnologia e ganhos de produtividade e
induziram processos de fusão e monopolização em diversos setores da economia
(ARRIGHI, 2008, p. 362-64).
A
abertura econômica foi primordialmente uma maneira de expor as empresas
chinesas estatais e nacionais
privadas à concorrência dos grandes monopólios estrangeiros, visando absorver
os maiores níveis tecnológicos dessas empresas e conseguir os patamares de
competividade necessários para disputar mercados pelo mundo[15].
Mas o Estado não foi demitido da produção, como reza a cartilha neoliberal,
muito menos se eximiu de regulação, nem o planejamento central foi encerrado.
Os
dados disponíveis afirmam que os setores estratégicos para direcionar a
acumulação de capital – energia, minérios, setor bancário e financeiro,
industrias estratégicas como produtoras de bens de capital, construção civil,
P&H etc. – estão ou totalmente ou parcialmente nas mãos do Estado[16]. O Estado chinês controla
os ritmos e direciona o processo de acumulação através de mecanismo indiretos –
como o Estado controla o custo da energia e o crédito, por exemplo, ele pode
direcionar o crescimento de determinado setor através de planejamento
indicativo – e diretos através do investimento estatal.
Pesquisas
recentes ainda afirmam que o peso da economia pública na sociedade chinesa vem
crescendo devido à crise de 2008. O setor mais ligado ao capital privado está
centrado na exportação e com a crise capitalista que explode com o estouro da
bolha imobiliária dos EUA a demanda pelas exportações chinesas vem sendo
reduzida e existe uma fuga de capitais da China para outros países da Ásia com
menos regulamentação e custos da força de trabalho (o aumento constante dos
salários e a pressão por melhores condições de trabalho está afugentando
empresas da China); nesse cenário o PCCh está apostando em amplo programa de
investimento e expansão do setor público para compensar a redução da economia
privada na dinâmica de acumulação chinesa. O XIX Congresso do PCCh que acontecerá no segundo semestre de 2017 terá
como uma das fortes disputas a tendência do Partido que defende mais mecanismos
de mercado ou até uma total liberalização e os setores do PCCh que querem
fortalecer ainda mais o planejamento econômico e o setor público da economia.
Também
é comum órgãos como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Agências de
Risco e grandes monopólios
criticarem o “controle excessivo” do Estado chinês nos empreendimentos
privados. Ao contrário do padrão de penetração do capital estrangeiro em países
dependentes como o Brasil, onde o capital estrangeiro recebe “incentivos
fiscais” (leia-se isenção de impostos por décadas), o terreno, obras de
readequação do fluxo de mercadorias e pessoas de acordo com seus interesses,
subsídios em custos de produção (como energia e água) e outras benesses sem
qualquer contrapartida como lei de remessa de lucros ou transferência de
tecnologia, o padrão de relação do Estado chinês com o capital estrangeiro é
outro – não custa lembrar que a imensa maioria das industrias estrangeiras que chegam ao Brasil e à
América Latina no geral são de baixa tecnologia e compõem as fases inferiores,
mais simples, das cadeias produtivas mundiais dos monopólios.
No caso chinês, o Estado recusa setores de
baixa produtividade e domínio tecnológico, existe um conjunto de leis que
limitam a apropriação privada do lucro, obrigando os capitais a reinvestir
partes de suas receitas na própria China, especialmente em pesquisa científica
(limitando o processo de transferência de valor e potencializando a acumulação
em solo chinês), existe uma obrigatoriedade de transferência de tecnologia e o
PCCh tem obrigatoriamente seções em todas as empresas da China onde os membros
do Partido exercem a fiscalização e o controle da execução das leis do país[17].
Longe
de um neoliberalismo que derruba ao máximo as barreiras institucionais para a
livre movimentação do capital, a China é um dos países com maior regulamentação
estatal do mundo. Mesmo assim o
capital estrangeiro continua tendo interesse em se deslocar para o gigante
asiático. Por quê?
Aqui cabe atacar outro mito: a ideia
equivocada de que foi o grande afluxo de capital estrangeiro o responsável pelo
boom do crescimento chinês. Arrighi mostra que o boom está associado com as
reformas de Deng e o afluxo de capital da diáspora chinesa. A proximidade
cultural, o domínio da língua e as relações de parentesco entre os burgueses da
diáspora e as autoridades chineses facilitaram essa rota de investimentos e
potencializaram uma ampliação da escala na acumulação de capital. Diante desse
quadro, tardiamente, os capitais dos EUA, Japão e Europa Ocidental passaram a
fluir para China em grandes levas a partir dos anos 90.
Em
1990, quando o investimento japonês decolou, o investimento conjunto de 12
bilhões de dólares de Hong Kong e Taiwan constituíam 75% de todo o investimento
estrangeiro na China, quase 35 vezes a parte japonesa. E por mais que o
investimento japonês tenha crescido a partir daí, ele mais seguiu do que
liderou o boom dos investimentos estrangeiros na China. Quando a ascensão
chinesa ganhou ímpeto próprio na década de 1990, o capital japonês,
norte-americano e europeu fluiu para a China com mais intensidade ainda (...)
em outras palavras, o capital estrangeiro aproveitou o bonde de expansão
econômica, que não foi ele que iniciou nem liderou (ARRIGHI, 2008, p. 359)
O mito de que foi o capital estrangeiro o
principal responsável pelo boom econômico na China caminha lado a lado da ideia
de que foi o abandono total do que representou a revolução chinesa e o maoísmo
que permitiu a ascensão da China à condição de superpotência mundial. De novo,
a questão colocada dessa forma simplista está equivocada e a relação de
continuidades e rupturas do maoísmo com a China pós-Deng devem ser colocado num
plano histórico de longa duração. Vejamos.
A China foi um dos países vítimas da expansão
colonial-imperialista das potências europeias no final do século XIX. De país
mais rico do mundo e liderança em termos de desenvolvimento cultural e
tecnológico nos séculos XVII e XVIII, a China foi transformada no país mais
pobre do mundo, destruída, humilhada e teve sua cultura nacional segregada a
tal ponto que existiam lugares na china colonizada onde eram proibidos a
entrada de “cães e chineses” – para o colonialismo-imperialista o “nativo” era
um ser inumano (LOSURDO, 2010).
A
divisão imperialista do mundo e sua consequente hierarquia racial passou a ser
questionada com a Revolução de Outubro. A Revolução Russa lançou um
requisitório mundial para os povos dos países coloniais e semicoloniais
quebrarem suas correntes e lutar decididamente pela liberdade. Além do
comprometimento do movimento comunista dirigido pela Terceira Internacional no
combate ao colonialismo e ao racismo, o exemplo do desenvolvimento econômico
soviético encantou o mundo. O país saiu de uma situação de extrema miséria e atraso máximo (contando com relações
de servidão no campo) para ser a segunda superpotência do mundo, derrotar a
máquina de guerra nazista, vencer a corrida espacial contra os EUA e garantir
aos seus habitantes um dos melhores padrões de bem-estar social do mundo (HOBSBAWM,
1995; BRAZ, 2011).
De
um ponto de vista ideológico e prático, o movimento comunista oferecia uma
teoria e uma estratégia de desenvolvimento para os países colonizados que
buscavam sua libertação e para os já libertos que precisavam construir os elementos de um Estado
nacional e economias modernas para garantir sua emancipação econômica-política.
Essa conjuntura provocou uma tendência vigente durante grande parte do século
XX de os movimentos anticoloniais e nacionalistas manterem boas relações ou
serem dirigidos pelos comunistas. Não é uma coincidência histórica que as
maiores revoluções socialistas do século XX tenham acontecido em países
dependentes ou coloniais onde a questão da emancipação nacional tinha a
primazia e o socialismo assumia a função de garantir a soberania nacional – a
revolução era realizada em nome da pátria e do socialismo e o socialismo era
visto como a única forma de manter a soberania e a integridade da pátria
(VISENTINI, 2007).
O
processo revolucionário chinês não foi diferente. O nacionalismo, a noção de resgatar
a soberania, a integridade e a dignidade dessa milenar nação foi algo que
acompanhou Mao Tse-Tung e os revolucionários do PCCh desde o começo. O maoísmo
nunca negou, inclusive, a participação da burguesia nacional patriótica no
esforça pelo renascimento da China. O processo de revolução cultural é que foi
uma exceção na história iniciada com a vitória da Revolução chinesa em 1949: a
trajetória da revolução chinesa é de um processo de emancipação nacional com
forte conteúdo socializante dentro de uma frente policlassista com suposta
hegemonia dos camponeses e proletários materializados no domínio do poder
político pelo PCCh; a Revolução cultural chinesa, evento traumático e flagrantemente derrotado mas amado de
maneira acrítica pelos intelectuais de esquerda europeus – com destaque para os
franceses –, representou a tentativa de romper essa frente policlassista e
transitar diretamente ao regime totalmente socializante retirando a
centralizada da questão nacional.
As reformas de Deng e a continuidade da
estratégia do PCCh representavam a volta à centralidade da questão nacional
como norte de atuação, a redução dos conteúdos socializantes do processo
revolucionário e um crescimento do papel da burguesia dita nacional no comando
político do país[18]. A
perda de centralidade dos conteúdos socializantes é explicada pela dinâmica interna
da luta de classe do país e principalmente pela situação internacional
No
plano das relações internacionais, não há dúvidas sobre o significado
reacionário da virada que ocorreu entre 1989 e 1991. E, exatamente em 1991, ano
do colapso da URSS e da primeira Guerra do Golfo, uma prestigiosa revista
inglesa (Internacional Affairs)
publica no número de julho um artigo de Barry G. Buzan que se concluía
anunciando com entusiasmo a boa nova: “O Ocidente triunfou tanto no comunismo
como no terceiro-mundismo”. A segunda vitória não era menos importante que o
primeiro: “hoje o centro tem uma posição mais dominante e a periferia uma
posição mais subordinada desde o início da descolonização”; podia-se considerar
felizmente arquivado o capítulo da história das revoluções anticoloniais
(LOSURDO, 2015, p. 280).
Não
estou entre os que creem na estratégia do PCCh como um rumo certo ao
socialismo, porém, é inegável a existência de perspectivas socializantes –
tendências essas que devem ser alvo de polêmica no próximo congresso do Partido. É inegável também a
desconfiança fundamental e até a repulsa em deixar o desenvolvimento nacional
nas mãos dos mecanismos de mercado – leia-se monopólios do imperialismo e suas
instituições de organização e hegemonia, como o FMI e Banco Mundial –, que se
manifesta através da manutenção da planificação econômica, propriedade pública
ainda proeminente dos meios de produção, controle rígido dos “aparelhos
privados de hegemonia” e do monopólio do poder político pelo PCCh. Todos esses
elementos são, sem dúvida, continuidades das formas de transição socialista no
século XX. O que me parece central no caso chinês é o papel subordinado do
conteúdo socializante e o esvaziamento significativo das formas de poder
popular ou democracia operária dentro dessa estrutura.
O impressionante Estádio nacional de Pequim |
A
revolução chinesa garantiu a soberania nacional e um patamar de base em termos
de desenvolvimento econômico, científico e social de onde arrancou o boom
chineses a partir das reformas de Deng. A China não está galgando o papel de
superpotência dominante no mundo porque renegou a revolução, mas sim porque fez
a sua revolução
Remove-se,
assim, o essencial: “as conquistas sociais da era de Mao” consideradas num todo
foram “extraordinárias”: elas implicaram a nítida melhora das condições
econômicas, sociais, culturais e uma forte elevação da “expectativa de vida” do
povo chinês. Sem esses pressupostos, não se pode compreender o prodigioso
desenvolvimento econômico que sucessivamente libertou centenas de milhões de
pessoas da fome e até mesmo da morte por inanição (LOSURDO, 2015, p. 337).
E
Arrighi (2008), citando um relatório do Banco Mundial (instituição insuspeita
de simpatias maoístas) diz
A
realização mais notável da China durante as últimas três décadas [dos anos 50
até os 80] foi a melhora das condições de vida dos grupos de baixa renda em
termos de necessidades básicas, muito mais do que se deu com os grupos
correspondentes da maioria dos outros países pobres. Todos têm trabalho; o
fornecimento de alimentos é assegurado por meio de uma mistura de racionamento
estatal com auto-seguro coletivo; as crianças não só estão quase todas na
escola como também são comparativamente mais bem instruídas; e a grande maioria
tem acesso a assistência médica básica e serviços de planejamento familiar
(ARRIGHI, 2008, p. 375).
Toda
ideologia emanada dos aparelhos ideológicos dos EUA procura ocultar esses
elementos do desenvolvimento chinês e combater o “consenso de Pequim”. As
operações ideológicas conseguem, inclusive, encobrir os elementos mais
gritantes da realidade. Vamos pegar um exemplo. O processo de privatização das
comunicações e telefonias pela periferia do capitalismo e o fim da URSS dotou o
imperialismo estadunidense de uma capacidade única no mundo de controle e
vigilância. As redes sociais, elementos característicos do cotidiano no século
XXI, são em sua quase totalidade controlados por empresas dos EUA e atuam em
associação orgânica com NSA, CIA e departamento de Estado dos EUA.
É
mais que documentado, especialmente depois das denúncias do ex-técnico da NSA,
Edward Snowden, o papel que esse controle das comunicações tem na atuação do
imperialismo e na derrubada de governos hostis a qualquer interesse dos EUA[19]. A China desenvolve um
sistema de comunicação – internet, redes sociais, telefonia, comunicação por
satélite etc. – próprio e mantém as transnacionais dos EUA fora do controle
desse setor da economia. Qualquer análise minimamente séria deveria concluir
que isso é uma grande conquista para a soberania nacional chinesa, impede a
ingerência dos EUA e é um objetivo a ser perseguido por qualquer país que não
queira ter sua segurança nacional ameaçada, mas a propaganda massiva transforma
esse ganho político fundamental em simples censura e cerceamento da “liberdade
de expressão” por parte do totalitário
Partido Comunista[20].
A
propaganda imperialista ataca sem meias palavras todos os elementos
fundamentais da soberania nacional chinesa e transforma sua estratégia de
desenvolvimento no seu contrário: o que possibilitou a ascensão chinesa foi a
negação total dos ditames neocoloniais do “consenso de Washington” e da
ideologia do livre-mercado; mas a China é mostrada como o principal exemplo de ação descontrolada do capital sem
regulação do Estado.
O fato incontornável, porém, é que a despeito
da ação imperialista, a estratégia do PCCh vem sendo vitoriosa em todos os seus
objetivos fundamentais. A Nova Rota da Seda, lançada pelo presidente Xi Jinping,[21]
obtendo sucesso, irá reconfigurar de forma
radical todo comércio e fluxo de capital mundial e transformar a China no maior
centro coordenador da acumulação de capital do mundo, destruindo o que Losurdo (2015)
chama de “era colombiana”: a primazia da Europa e posteriormente dos EUA na
economia-mundo com a subjugação da Ásia, África e América Latina”.
Quais serão as consequências
para a luta socialista e anticolonial dessa ascensão chinesa? Temos
dificuldades em ver a ascensão chinesa como parte de uma estratégia de
transição socialista de longo prazo e também não nos é crível conceber a
sociedade chinesa como capitalista igual aos EUA ou Inglaterra. Contudo, uma
questão é certa e incontornável: depois do “fim da história”, assistimos ao que
promete ser um dos acontecimentos históricos de maior proporção no século XXI,
e depois de séculos de humilhação colonial, o dragão chinês pode voltar a
liderar o mundo.
Conclusão
Esperamos
ter demonstrando com essas linhas que é impossível compreender a ascensão
chinesa sem procurar superar os
mitos que a propaganda imperialista envolve a história, a política e a economia
do país. Tal como na Guerra Fria, onde os maiores absurdos históricos reinavam
como verdades científicas inquestionáveis – à exemplo da associação da
União Soviética ao nazismo ou de Hitler à Stálin através da maior peça de
cretinice sociológica do século XX: a categoria de totalitarismo –, com a China
de hoje acontece o mesmo.
Existe
um ditado que diz que na guerra a primeira vítima é a verdade. A guerra
econômica, política e ideológica (quem sabe em breve militar) contra a ascensão
chinesa procura encobrir que estamos diante de um país que há menos de cem anos
era subdesenvolvido e colonizado e estava submetido ao mais bárbaro
colonialismo. Esse país conseguiu realizar sua revolução e consolidar-se como uma
nação soberana, independente e
livre, conquistando melhoras incríveis nas condições socioeconômicas do seu
povo.
Esse
mesmo país, numa era de contrarrevolução mundial com a derrota devastadora do
movimento comunista e anticolonial, conseguiu retirar mais de 700 milhões de
pessoas da pobreza, romper com o monopólio capitalista-ocidental da ciência e
tecnologia de ponta e tornar-se uma superpotência, abalando a divisão
norte-sul. Curiosamente, porém, essa gigantesca façanha histórica não é vista
como uma conquista emancipatória, ainda que contraditória e limitada.
A
ideologia dominante através dos seus signos anti-China – como as já refutadas
ideias do trabalho semi-escravo universal ou o neoliberalismo chinês –
conseguiu lograr um consenso na esquerda Ocidental de que a China é um exemplo
de triunfo do capitalismo mais bárbaro e não da luta anticolonial e
anti-imperialista numa época de contrarrevolução e derrota do movimento
comunista.
Não
é preciso crer na China como exemplo de transição socialista – coisa que não
endossamos – para perceber os erros desse tipo de análise. A China, quer se revele plenamente
capitalista no futuro ou leve a cabo todos as promessas do comunismo (o que
duvido), deveria ser motivo de orgulho. O seu desenvolvimento não é uma vitória
do capitalismo, mas nossa, dos comunistas que sempre lutaram e continuam
lutando pela autodeterminação dos povos.
Referências.
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MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na Teoria Marxista. Rio
de Janeiro: Editora Gramma, 2014.
VISENTINI, Paulo Fagundes. A revolução vietnamita. São Paulo:
Editora Unesp, 2007.
[1] O papel da China na campanha
presidencial estadunidense de 2016 deixa explícito a histeria sinofóbica que
existe no estabelechiment político dos EUA. Consultar matéria da BBC de Londres
sobre o tema (acessado em 20/01/2017):
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-38649836
[2] “Economia Chinesa abala o mundo”, Carta
Capital, acessado em 21/01/2017:
http://www.cartacapital.com.br/revista/864/o-tropeco-de-godzilla-4333.html
[3] China terá o maior mercado consumidor
do mundo, Folha de São Paulo, acessado em 20/01/2017:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/2/26/brasil/3.html
[4] A internet está inundada com artigos,
matérias jornalísticas, documentários etc. sobre o trabalho escravo na China. É
mais fácil, inclusive, achar material jornalístico em português sobre trabalho
escravo no dragão asiático que no Brasil. Segue alguns exemplos: Escândalo de
trabalho escravo estoura na China, World Socialist, Acessado em 20/01/2017: https://www.wsws.org/pt/2007/jun2007/chpo-j28.shtml
/ O trabalho escravo na China, Jornal GGN, acessado em 20/01/2017: http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/o-trabalho-escravo-na-china
/ Câmera escondida revela abuso contra empregados em fabricante da
Apple na China, BBC, Acessado em 20/01/2017:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/12/141219_apple_fabrica_china_pai
[5] David
Harvey, em seu Brief History Of Neoliberalism fala em “neoliberalismo com
características chinesas” e na edição inglesa coloca na capa Deng Xiaoping ao
lado de Reagan, Pinochet e Thatcher; Peter Kwong também fala em neoliberalismo
chinês e afirmam que Reagan e Deng tinham Milton Friedman como gurus. Outros
exemplos dessas análises do “neoliberalismo chinês” podem ser vistos em (ARRIGHI,
2008, p. 359-60).
[6] “Na
outra ponta do espectro ideológico, os promotores institucionais do consenso de
Washington – o Banco Mundial, o FMI, o Tesouro dos Estados Unidos e do Reino
Unido, apoiados pela mídia formadora de opinião, como o Financial Times e o
Economist – proclamaram que a redução da pobreza e desigualdade de renda no
mundo que acompanhou o crescimento econômica da China desde 1980 pode ser
atribuída ao fato de os chineses terem adotado a política que eles receitavam”
(ARRIGHI, 2008, p. 360).
[7] O
debate sobre a ascensão chinesa e o maoísmo pode ser encontrado em (LOSURDO,
2015; 2004) e (NAVES, 2005).
[8] Como
defende o polêmico livro francês de Mylène Gaulard, Karl Marx à Pekin – Les Racines de la
Crise en Chine Capitaliste, Editions Demopolis, Paris, 2014.
[9]
“The Economist em 4 de Março: “Desde 2001, o pagamento pela hora
trabalhada nas fabricas aumentou na média de 12 por cento ao ano.” Imagine se
os trabalhadores daqui [Estados Unidos] estivessem ganhando aumento de 12% todo
ano nos últimos 15 anos! Mesmo com contratos negociados através dos sindicatos,
o aumento de salários nos Estados Unidos quase não acompanhou o ritmo da
inflação.
Na seção de tecnologia da revista New York Times de 24 de Abril: “Ondas de trabalhadores que migraram do campo tem preenchido as fábricas chinesas pelas últimas três décadas e a ajudaram a tornar a maior nação produtora do mund, Mas muitas empresas agora se encontram na luta para contratar um número suficiente de trabalhadores. E para os poucos trabalhadores que encontram, a remuneração mais do que quintuplicou na última década, para mais de $500 por mês em províncias costeiras.”” – China, aumento de salário e militância operária, Revista Nova Cultura, acessado em 19/01/2017.
Na seção de tecnologia da revista New York Times de 24 de Abril: “Ondas de trabalhadores que migraram do campo tem preenchido as fábricas chinesas pelas últimas três décadas e a ajudaram a tornar a maior nação produtora do mund, Mas muitas empresas agora se encontram na luta para contratar um número suficiente de trabalhadores. E para os poucos trabalhadores que encontram, a remuneração mais do que quintuplicou na última década, para mais de $500 por mês em províncias costeiras.”” – China, aumento de salário e militância operária, Revista Nova Cultura, acessado em 19/01/2017.
[10]
“Entre
a tomada do poder, em 1949, e a chegada de Deng Xiaoping, em 1978, foram
construídas umas 100 cidades. Esse ritmo se acelerou com a reforma econômica
dos Anos 80, e alcançou seu ritmo atual com a urbanização nacional do começo
deste século, o que já resultou numa mudança demográfica sem precedentes: pela
primeira vez, em sua história milenária, existem mais chineses morando nos
centros urbanos que no campo.
O último plano de urbanização nacional, que foi iniciado em 2014 e deveria ser concluído em 2020, foi anunciado em março do ano passado, com um custo de 7 trilhões de dólares – quase a metade do PIB dos Estados Unidos. O plano forma parte da transição chinesa, de uma economia baseada nas exportações a outra mais centrada no consumo, e que constitui uma fonte de demanda para a economia global, devido às necessidades de matérias-primas e produtos elaborados implícitas em qualquer programa urbanizador” – O mito das cidades fantasmas chinesas, Carta Maior, acessado em 19/01/2017.
O último plano de urbanização nacional, que foi iniciado em 2014 e deveria ser concluído em 2020, foi anunciado em março do ano passado, com um custo de 7 trilhões de dólares – quase a metade do PIB dos Estados Unidos. O plano forma parte da transição chinesa, de uma economia baseada nas exportações a outra mais centrada no consumo, e que constitui uma fonte de demanda para a economia global, devido às necessidades de matérias-primas e produtos elaborados implícitas em qualquer programa urbanizador” – O mito das cidades fantasmas chinesas, Carta Maior, acessado em 19/01/2017.
[11] Michael Roberts, em seu China a weird
beast, debate essa mudança na economia chinesa: acessado em 10/01/2017:
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/09/17/china-a-weird-beast/
[12] China melhora sistema de previdência
social, Vermelho.org, acessado em 20/01/2017:
http://www.vermelho.org.br/noticia/256003-1
[13]
Cumpre destacar um elemento
curioso desse modelo de transição chinês para um crescimento com centralidade
no mercado interno e consumo. Os modelos de desenvolvimento intenso tende a ter
taxas de crescimento maiores que as fases de desenvolvimento extensivos. A
redução das taxas de crescimento chinês nos últimos anos, que oscilaram de uma
média de 10% para 7%, estavam totalmente previstas nos planos quinquenais do
PCCh, porém, para muitos intelectuais esses taxas menores são a prova da lei
marxista da cada tendencial da taxa de lucro e há anos é profetizado uma
eminente crise capitalista de superacumulação na China. A análise das
contratendências que até agora evitaram o estouro dessa crise sempre imanente
nunca comparecem com destaque. Esse catastrofismo economicista pode ser
criticado com a mesma lógica que Gramsci criticou a teoria da revolução
permanente de Trotsky: “Bronstein [Trotsky] recorda nas suas memórias terem-lhe
dito que sua teoria [da revolução permanente] se revelara boa em quinze anos...
depois, e responde ao epigrama com outro epigrama. Na realidade, a sua teoria,
como tal, não era boa nem quinze anos antes, nem quinze anos depois: como
sucede com os obstinados, dos quais fala Guiacciardini, ele adivinhou em
grosso, teve razão na previsão prática mais geral; da mesma forma que se prevê
que uma menina de quatro anos se tornará mãe, e quando isso ocorre, vinte anos
depois, se diz ‘adivinhei’, esquecendo porém que quando a menina tinha quadro
anos tentara estupra-la, certo de que se tornaria mãe” (GRAMSCI apud MOTTA,
2014, p. 36).
[14] “Além disso, a separação capital/trabalho pode ser, e é frequentemente,
muito relativo no contexto chinês. Veremos como ela é limitada no curso das
empresas públicas – o que impede de considera-las simplesmente como uma forma
de capitalismo de Estado – e que ela é o ainda mais na economia “coletiva”,
onde os trabalhadores participavam na propriedade do capital, ou têm
propriedade plena – como as cooperativas (por ações ou não) ou nas comunas
populares mantidas. Claro está que, nos últimos casos, a propriedade fica mais
ou menos ‘separada’ da gestão (...) A ‘superioridade’ das empresas públicas
chinesas é a participação (limitada, mas real) do pessoal [força de trabalho]
na gestão das unidades, via representantes no Conselho de Supervisão e no
Congresso de trabalhadores” (ANDRÉANI e HERRERA, 2016, p.15-25).
[15]
Um
exemplo significativo de como o Estado chinês atua frente ao capital
estrangeiro na absorção de tecnologia: “assim, no início da década de 1990,
informou sem muita cerimônia à Toshiba e a outras grandes empresas japonesas
que, a menos que levassem consigo os fabricantes de peças, não precisavam nem
se incomodar em mudar para seu país. Mais recentemente, as empresas
automobilísticas chinesas conseguiram a proeza de realizar joint ventures
simultâneas com empresas estrangeiras rivais, como, por exemplo, a Guangzhou
Automotive com a Honda e a Toyota, algo que esta última sempre se recusou a
fazer. Esse acordo permitiu ao parceiro chinês aprender as melhoras práticas de
ambos os concorrentes e ser o único, na rede tripartite, a ter acesso aos
outros dois” (ARRIGHI, 2008, p. 361).
[16] “É difícil precisar quanto da economia é
estatal. Zhinwu Chen, professor de Yale, avalia que 75% da riqueza está nas
mãos do Estado [1], e o Banco Central Europeu diz que a economia hoje é
mais estatizada que no começo da crise de 2007/2008” – Uma viagem instrutiva à
China: reflexões de um filósofo, Diário.Info, acessado em 18/01/2017; “O Estado
mantém a Comissão de Administração e Supervisão do Patrimônio Estatal,
responsável por fiscalizar e manter controle políticos sobre as empresas” –
China’s economic growth and rebelancing, acessado em 18/01/2017.
[17]
O filosofo e estudioso da China
Domenico Losurdo (2015) chega a afirmar que o domínio do PCCh na vida econômica
chinesa é algo “evidente” e “incontestável” na realidade chinesa (p.324).
[18]
Os três autores que usamos como
referência para nosso estudo: Giovanni Arrighi, Samir Amin e Domenico Losurdo
não conseguem explicar de forma satisfatória a relação atual da burguesia
chinesa com o poder político. Losurdo e Arrighi, nas obras já citadas, afirmam
que a burguesia não é classe dominante embora seja permitida sua adesão ao PCCh
e seu crescimento qualitativo seja evidente e Amin, em seu artigo “China 2013”,
não entra diretamente na questão, mas, implicitamente, parece compartilhar da
visão dos dois pensadores italianos. A questão central que nos parece faltar é explicar
em detalhes os mecanismos que o PCCh usa para anular a transformação do poder
econômico da burguesia em poder político e ideológico (se a burguesia realmente
não for a classe dominante) e a que classe, classes e/ou fração de classes o
PCCh responde hoje.
[19] Moniz
Bandeira: "Os EUA aspiram a uma ditadura mundial do capital financeiro”,
Carta Capital, acessado em 19/01/2017:
http://www.cartacapital.com.br/revista/933/moniz-bandeira-os-eua-aspiram-uma-ditadura-mundial-do-capital-financeiro.
[20] Domenico
Losurdo sintetiza esses elementos do ataque da ideologia dominante a China no
seu artigo de 2007 onde debate a proposta de boicote às Olimpíadas de Pequim
(acessado em 18/01/2017): http://www.vermelho.org.br/noticia/28556-1
[21] “A
Iniciativa OBOR (One Belt, One Road), também conhecida como Nova Rota da Seda,
foi divulgada no segundo semestre de 2013 pelo presidente chinês Xi Jinping.
Trata-se do mais ambicioso projeto chinês para alavancar sua inserção internacional.
Como destaca Yiwei (2016), este projeto oferece alternativas ao estilo de globalização
conduzida pelos EUA considerada por ele insustentável" – O papel da África
na nova rota da seda marítima, Resistência, acessado em 18/01/2017: http://www.resistencia.cc/o-papel-da-africa-na-nova-rota-da-seda-maritima/
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