sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A organização leninista e a Revolução Brasileira: apontamentos contra um senso comum

protesto do KKE
Recentemente, assisti todos os vídeos do seminário da Boitempo sobre os 100 anos da Revolução Russa. Nos vídeos, alguns bons e outros horríveis, um dos elementos bastante presente, foi a crítica a concepção leninista de partido. Adjetivos como “ultrapassado”, “mecânico”, “superado” etc. foram muito evocados nessas críticas. No mais das vezes, a concepção leninista de partido era resumido à questão do centralismo-democrático – sempre dito como essencialmente autoritário. Em nenhuma das “críticas” foi minimamente debatido algo central: o que é a concepção leninista de partido que se pretende superada?

Nos próximos meses, se o tempo não me faltar, pretendo escrever uma série de reflexões sobre a questão organizativa e a luta política nas condições concretas da realidade brasileira. Como uma espécie de introdução, e uma exposição mais geral de algumas ideias, buscarei nessas linhas mostrar, ainda que basicamente, o que é a concepção leninista de partido e porque ela é atual como forma-organizativa do operador político da Revolução Brasileira. Esse texto, como uma introdução geral e na forma de ensaio, não recorrerá a referências, citações e confrontações com outros autores; isso será feito nos próximos escritos. Tomem essas linhas como um início de um debate mais amplo.

Ano passado, no acampamento de formação política da UJC, tive a responsabilidade de falar sobre a estratégia socialista defendida pelo PCB. Nas perguntas um camarada me questionou se a concepção leninista de partido, formulada nas condições específicas e históricas da Rússia, era atual para o Brasil de 2016. A minha resposta assim se delineou.

Primeiro, o partido político em Lênin é um produto histórico, organizativo e político de uma compreensão da dinâmica da sociedade capitalista em cada realidade nacional – sem nunca perder de vista o processo mundial de acumulação capitalista – visando a conquista do poder. Logo, a primeira coisa a ser dita, é que antes de escrever sobre a teoria do partido, Lênin analisou o capitalismo russo (seu famoso livro “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia) e as condições da luta de classe naquela situação histórica. Ao compreender a dinâmica das classes em luta em seus aspectos econômicos, políticos, sociais, culturais e organizativos, é que a forma-partido expressa no clássico “Que Fazer?” foi materializada. O pressuposto de toda reflexão é que essa forma-partido tem como objetivo último, estratégico, tomar o poder político para realizar a transição socialista. O partido não substitui a classe, ele é a classe (isso não significa, em absoluto, unipartidarismo, o plural aqui pode ser usado sem problemas) em sua ação revolucionária.

Analisar concretamente a situação política e formar uma organização que consiga dentro dessa situação concreta atuar como operador político revolucionário dos explorados e oprimidos. Em poucas palavras, essa é a concepção leninista de partido! Não é preciso dizer que essa “definição” opera numa altíssimo nível de abstração e que a concretização das formas organizativas, em cada realidade e momento histórico, é variada, mas, ao mesmo tempo, há elementos de universalidade na obra de Lênin que se mantém atuais até hoje e enquanto existir capitalismo, assim vão se manter. Nesse ponto, me parece, é necessário uma explicação teórico-metodológica melhor.

Marx, ao escrever o Capital, procurou apreender a dinâmica da sociedade capitalista. O fundador do materialismo-histórico não analisou o capitalismo inglês, mas tomou essa formação social como concreção histórica da universalidade da acumulação capitalista. A partir de O Capital temos uma crítica da economia política que desnuda os meandros da lógica do capital. Contudo, só com a obra de Marx não é possível, por exemplo, compreender em sua riqueza de determinações a acumulação capitalista na América Latina. É necessário percorrer um nível de abstração menor saturando de determinações o objetivo de estudo até reconstruir o concreto como um todo pensado. Em poucas palavras: só com Marx não se entende a América Latina, mas sem ele muito menos. Nesse sentido, a Teoria Marxista da Dependência, é a crítica da economia política da acumulação capitalista dependente que não nega O Capital de Marx, mas, é a continuidade da análise em níveis de abstração menor dentro de um processo de concretização histórica maior.

Voltando à concepção leninista de partido. A despeito da gigantesca variedade de dinâmicas de classe, correlação de forças, formas-políticas e processos organizativos das classes em luta, há na reflexão leninista sobre o partido elementos de universalidades sempre atuais, mas essas universalidades, ao tomar a forma organizativa particular, isto é, concreção histórica, não são engessadas ou mecânicas. Vamos começar com os exemplos que, a partir da ilustração, as ideias devem ficar de mais fácil compreensão.

Um dos elementos de universalidade da concepção leninista de Partido é que a institucionalidade burguesa, a despeito de seu nível maior ou menor de democratização, tem como essência a conservação da ordem burguesa. O Estado burguês e seu sistema político são sempre a materialização das relações de produção dominantes. Isso significa que o partido que busca se constituir enquanto operador político revolucionário não deve ser nunca um gestor da ordem burguesa, mas ser o instrumento de destruição dessas estruturas de poder buscando a criação do poder popular ou Estado proletário. Como isso se expressará em cada conjuntura? Tal questão não é um dado a priori. Se o partido revolucionário irá ou não participar das eleições, que peso jogará, sua prioridade de atuação tática será o legislativo ou o executivo etc. é uma questão de conjuntura política e não de estratégia. O que é estratégico, e universal, é que o Partido revolucionário, para ser revolucionário, não será um gestor da ordem, mas seu antagonista por essência – Lênin, no seu clássico “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, explicou de maneira suficientemente clara, que o partido revolucionário não nega por princípio a atuação parlamentar, mas nega ser um partido parlamentar.

Não ser um partido da ordem, isto é, atuar no sistema político não sendo orgânico ao sistema político, pressupõe a organização revolucionária desenvolver a capacidade de atuar dentro e fora da institucionalidade. Como latino-americanos, me parece, não é preciso lembrar o quanto na história do movimento operário as nossas organizações foram perseguidas e postas na ilegalidade nos momentos mais acirrados da luta de classe. Quebrar os limites da legalidade ou avançar no Estado de Exceção dentro da legalidade é um princípio básico da ação burguesa em momentos de acirramento de classe confirmado por todas as experiências históricas até hoje conhecidas. Garantir, portanto, essa dupla capacidade, atuação legal e ilegal, é outro elemento de universalidade da concepção leninista de organização.

A organização revolucionária, para garantir não ser um gestor da ordem e conseguir atuar mesmo estando marginal ou fora da legalidade, precisa garantir sua independência de classe nos aspectos organizativos: finanças, comunicação, estrutura etc. Ou seja, a organização revolucionária não pode depender financeira e organizativamente do Estado e muito menos da classe dominante. É um partido onde seu funcionamento orgânico é garantido por sua militância através de meios que historicamente são muito variados. O partido revolucionário pode receber financiamento do fundo partidário, por exemplo, mas esse fundo nunca, sob hipótese alguma, pode ser seu núcleo de estruturação. A questão, nesse aspecto, é bem clara: a independência política exige um correlato (para ser real) organizativo. Quem paga a banda escolhe a música – a organização que depende do Estado burguês ou de “doações” privadas nunca poderá operar uma real política proletária.

Garantir a independência de classe em seus aspectos materiais impõe um nível de profissionalização altíssimo da atividade política. Não é possível, por exemplo, nas condições do Brasil, um país continental, manter um partido de âmbito nacional funcionando com “ativistas” – pessoas que tomam a ação política como uma dimensão secundária ou complementar de suas vidas. O partido revolucionário, para funcionar como tal, exige militantes profissionais e semiprofissionais. O revolucionário profissional é uma exigência universal da prática política revolucionária. Qual será a forma de profissionalização? Em que ramos de atuação? Qual a forma de seleção e controle da atuação dos militantes profissionais? Essas questões, como já disse em outro exemplo, dependem de situações históricas específicas e assumem as mais diversas formas organizativas, contudo, a forma, não muda o conteúdo: a profissionalização de revolucionários é uma necessidade intransponível.

Esse partido revolucionário negador da ordem com capacidade de atuar legal e ilegalmente sempre em busca de sua independência de classe e profissionalização da atuação política, precisa, para ser um operador político nacional, atuar como um sujeito coletivo, um estado-maior do proletariado. Sem negar as especificidades regionais, para o processo revolucionário, é necessário que o partido (aqui, de novo, o plural pode ser usado sem problemas!) consiga congregar todas as particularidades num programa político revolucionário que vai ser a expressão do universal: desde o trabalhador precarizado do centro de São Paulo, até o ambulante de Recife e o trabalhador agrícola do Rio Grande do Sul, todos, sem nunca esquecer as mediações, vão atuar e defender o mesmo programa (sem falar das categorias sociais oprimidas, como as LGBTs). Em suma, sem unidade na ação, especialmente nos momentos de acirramento da luta de classes, é impossível a revolução.

Historicamente, a forma de garantir a unidade na ação, a constituição de um sujeito político coletivo e coeso, foi a forma do centralismo-democrático. Nesse ponto, o cuidado com as caricaturas deve ser bem maior. A nossa memória histórica esqueceu que a forma do centralismo-democrático é infinitamente mais variada que se imagina. O centralismo no PCUS nunca foi o mesmo que no Partido Comunista Cubano, no Partido Comunista Chinês ou no Partido do Trabalho da Coreia. Aliás, o Partido Comunista Italiano, o PCI, no auge do eurocomunismo e sua consequente negação do leninismo, manteve o centralismo-democrático!

Outro ponto importante, qualquer conhecedor mínimo do movimento comunista sabe que a concepção de centralismo-democrático do Partido Comunista Grego (KKE), Partido Comunista Sírio e do Partido Comunista Brasileiro não é a mesma, por exemplo. Só o reducionismo anticomunista pode tratar o centralismo-democrático como “tudo a mesma coisa”. O objetivo da atuação coesa e unitária na ação pode ser conseguida fora da estrutura do centralismo-democrático a despeito da própria variedade de formas desse último? Nunca neguei que sim! A questão, e indo direto ao ponto, é que até hoje a única forma eficiente encontrada para essa tarefa é o centralismo-democrático – o que não impede de daqui há algum tempo encontrarmos outra.

Para se contrapor aos aparelhos ideológicos da burguesia, afinal, a classe que detém o poder material controla o poder espiritual [cultural], a organização revolucionária deve manter um robusto aparato de agitação e propaganda do seu programa político. Esse aparato de agitação e propaganda é o que vai viabilizar que em cada luta particular, imediata, limitada, o ponto de vista geral, revolucionário, seja colocado, garantindo que a prática política será pedagógica no avanço da consciência de classe. Ou seja, o partido revolucionário é o formulador e divulgador do projeto revolucionário e o vetor de propagação de uma nova cultura, negando os valores e a ideologia dominante. A comunicação é um ponto nodal, crítico, no partido revolucionário: ela precisa garantir capacidade de agitação e propaganda para e com a classe e ao mesmo tempo garantir o funcionamento orgânico de todas as instâncias do partido, desde as bases nos rincões mais afastados do país até o comitê central.

Como garantir, por exemplo, uma atuação ilegal sem uma eficiente comunicação externa e interna? E como garantir essa comunicação sem revolucionários que se especializem nisso e capacidade financeira própria para montar essa aparato de agitação, propaganda e comunicação? No sistema político burguês, por mais democrático que seja, a contestação aberta da ordem, isto é, o debate sobre o programa revolucionário, nunca será feito! Cabe ao partido, em sua atuação concreta, criar as condições materiais para tornar esse debate – sempre em condições históricas particulares – um movimento de massa.

Podemos resumir tudo que falamos na seguinte questão: o Estado burguês, a despeito de sua múltipla variabilidade institucional, é um instrumento de conservação da ordem; a burguesia, nos processos de luta de classe, nunca abrirá mão de quebrar a legalidade ou potencializar a repressão dentro da legalidade quando necessário; o sistema político e sua lógica de financiamento são estruturados de tal forma para que os partidos organicamente integrados como defensores da ordem, sendo de esquerda ou direita; a sociedade burguesa, em sua reprodução, conta com complexos e ramificados aparelhos repressivos, ideológicos e de controle que para serem enfrentados necessitam de estruturas igualmente complexas e sólidas; os meios de comunicação e produção cultural são monopólios da classe dominante e as classes dominadas, para fazer política, precisam buscar quebrar esse monopólio desenvolvendo seus próprios instrumentos hegemônicos.

O parágrafo acima resume alguns dos principais desafios que todo revolucionário tem de enfrentar na sua realidade nacional. A concepção leninista de organização, em seus elementos de universalidade, é uma resposta política a esses desafios. Por isso que no título desse texto eu afirmei que é um senso comum essa ideia amplamente difundida que a concepção leninista de organização está superada. Façam o teste: busque aprofundar o debate com os que defendem isso apontando os elementos acima tratados. Garanto por experiência própria que a maioria ficará sem resposta.


Nos próximos escritos vamos desenvolver de forma mais aprofundada apontamentos realizados de maneira telegráfica nesse escrito. Mas antes disso, não podemos terminar sem apontar uma importante provocação: nos últimos 40 anos a concepção leninista de organização foi expurgada da maioria das organizações de esquerda do mundo; o senso comum do “novo”, “novidade”, “a nova coisa” tomou a esquerda. Desconheço nesse período qualquer experiência exitosa de revolução conduzida por essas “novas concepções” organizativas. As ideias sobre as formas de ativismo em rede e integração horizontal de organização tem como principal mérito vender muitos livros na Livraria Cultura.  

Um comentário:

  1. Excelente texto, gostaria que você comentasse um parágrafo meu, ele foi escrito baseado no seu texto, e nele, eu me mostro muito preocupado como o momento na linha do tempo que vai do nascimento do poder popular até a formação do bloco histórico e do partido revolucionário, como neste momento longo de resistência precisamos operar com as estruturas de luta dos trabalhadores disponíveis para aumentar o controle direto, o poder dos trabalhadores , o poder popular, até que o poder popular não seja mais o poder alternativo, o outro poder, mas o poder de facto.


    " Analisar concretamente todas as forças locais dos trabalhadores e das elites locais capitalistas, juntamente com os seus representantes; e a partir desta análise formar uma organização local-nacional dentro do contexto latino americano, que consiga dentro desta situação concreta atuar entre a criação de poder popular mais simples até a formação do bloco histórico e do partido revolucionário, uma organização com mobilidade e robustez suficientes para contribuir para a formação e fortalecimento de ambos (bloco e partido), funcionando como verdadeiros tanques de guerra da classe trabalhadora, e esta em torno destas fortalezas móveis progredindo no terreno concreto da realidade. Uma organização intermediária, entre o nada e o partido, que prepare o caminho e contribua para a formação do bloco histórico, onde o operador político revolucionário dos explorados e oprimidos, possa então realizar mais fortemente o assalto final da tomada do poder político. Haverá, portanto, em cada comunidade, uma estrutura entre o nada e o bloco, entre o pouco e o partido, com a capacidade de aglutinar em torno de si as forças progressistas locais para pavimentar o caminho da revolução. Se o principal elemento do bloco é o partido revolucionário, o principal elemento de luta no longo processo de resistência para ascender ao bloco histórico serão os sindicatos guarda chuva, aqueles que albergam em si toda a estrutura de mobilidade e robustez de guerra da classe trabalhadora até que o bloco histórico se faça caminhar para a ruptura."

    Abração

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