protesto do KKE |
Recentemente, assisti todos os vídeos do
seminário da Boitempo sobre os 100 anos da Revolução Russa. Nos vídeos, alguns
bons e outros horríveis, um dos elementos bastante presente, foi a crítica a
concepção leninista de partido. Adjetivos como “ultrapassado”, “mecânico”,
“superado” etc. foram muito evocados nessas críticas. No mais das vezes, a
concepção leninista de partido era resumido à questão do
centralismo-democrático – sempre dito como essencialmente autoritário. Em
nenhuma das “críticas” foi minimamente debatido algo central: o que é a
concepção leninista de partido que se pretende superada?
Nos próximos meses, se o tempo não me faltar,
pretendo escrever uma série de reflexões sobre a questão organizativa e a luta
política nas condições concretas da realidade brasileira. Como uma espécie de
introdução, e uma exposição mais geral de algumas ideias, buscarei nessas
linhas mostrar, ainda que basicamente, o que é a concepção leninista de partido
e porque ela é atual como forma-organizativa do operador político da Revolução
Brasileira. Esse texto, como uma introdução geral e na forma de ensaio, não
recorrerá a referências, citações e confrontações com outros autores; isso será
feito nos próximos escritos. Tomem essas linhas como um início de um debate mais
amplo.
Ano passado, no acampamento de formação política
da UJC, tive a responsabilidade de falar sobre a estratégia socialista
defendida pelo PCB. Nas perguntas um camarada me questionou se a concepção
leninista de partido, formulada nas condições específicas e históricas da
Rússia, era atual para o Brasil de 2016. A minha resposta assim se delineou.
Primeiro, o partido político em Lênin é um
produto histórico, organizativo e político de uma compreensão da dinâmica da
sociedade capitalista em cada realidade nacional – sem nunca perder de vista o
processo mundial de acumulação capitalista – visando a conquista do poder.
Logo, a primeira coisa a ser dita, é que antes de escrever sobre a teoria do
partido, Lênin analisou o capitalismo russo (seu famoso livro “O
desenvolvimento do capitalismo na Rússia) e as condições da luta de classe
naquela situação histórica. Ao compreender a dinâmica das classes em luta em
seus aspectos econômicos, políticos, sociais, culturais e organizativos, é que
a forma-partido expressa no clássico “Que Fazer?” foi materializada. O
pressuposto de toda reflexão é que essa forma-partido tem como objetivo último,
estratégico, tomar o poder político para realizar a transição socialista. O
partido não substitui a classe, ele é a classe (isso não significa, em
absoluto, unipartidarismo, o plural aqui pode ser usado sem problemas) em sua
ação revolucionária.
Analisar concretamente a situação política e
formar uma organização que consiga dentro dessa situação concreta atuar como
operador político revolucionário dos explorados e oprimidos. Em poucas
palavras, essa é a concepção leninista de partido! Não é preciso dizer que essa
“definição” opera numa altíssimo nível de abstração e que a concretização das
formas organizativas, em cada realidade e momento histórico, é variada, mas, ao
mesmo tempo, há elementos de universalidade na obra de Lênin que se mantém
atuais até hoje e enquanto existir capitalismo, assim vão se manter. Nesse
ponto, me parece, é necessário uma explicação teórico-metodológica melhor.
Marx, ao escrever o Capital, procurou apreender
a dinâmica da sociedade capitalista. O fundador do materialismo-histórico não
analisou o capitalismo inglês, mas tomou essa formação social como concreção
histórica da universalidade da acumulação capitalista. A partir de O Capital
temos uma crítica da economia política que desnuda os meandros da lógica do
capital. Contudo, só com a obra de Marx não é possível, por exemplo,
compreender em sua riqueza de determinações a acumulação capitalista na América
Latina. É necessário percorrer um nível de abstração menor saturando de
determinações o objetivo de estudo até reconstruir o concreto como um todo
pensado. Em poucas palavras: só com Marx não se entende a América Latina, mas
sem ele muito menos. Nesse sentido, a Teoria Marxista da Dependência, é a
crítica da economia política da acumulação capitalista dependente que não nega
O Capital de Marx, mas, é a continuidade da análise em níveis de abstração
menor dentro de um processo de concretização histórica maior.
Voltando à concepção leninista de partido. A
despeito da gigantesca variedade de dinâmicas de classe, correlação de forças,
formas-políticas e processos organizativos das classes em luta, há na reflexão
leninista sobre o partido elementos de universalidades sempre atuais, mas essas
universalidades, ao tomar a forma organizativa particular, isto é, concreção
histórica, não são engessadas ou mecânicas. Vamos começar com os exemplos que,
a partir da ilustração, as ideias devem ficar de mais fácil compreensão.
Um dos elementos de universalidade da concepção
leninista de Partido é que a institucionalidade burguesa, a despeito de seu
nível maior ou menor de democratização, tem como essência a conservação da
ordem burguesa. O Estado burguês e seu sistema político são sempre a
materialização das relações de produção dominantes. Isso significa que o
partido que busca se constituir enquanto operador político revolucionário não
deve ser nunca um gestor da ordem burguesa, mas ser o instrumento de destruição
dessas estruturas de poder buscando a criação do poder popular ou Estado
proletário. Como isso se expressará em cada conjuntura? Tal questão não é um
dado a priori. Se o partido revolucionário irá ou não participar das eleições,
que peso jogará, sua prioridade de atuação tática será o legislativo ou o
executivo etc. é uma questão de conjuntura política e não de estratégia. O que
é estratégico, e universal, é que o Partido revolucionário, para ser
revolucionário, não será um gestor da ordem, mas seu antagonista por essência –
Lênin, no seu clássico “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, explicou de
maneira suficientemente clara, que o partido revolucionário não nega por
princípio a atuação parlamentar, mas nega ser um partido parlamentar.
Não ser um partido da ordem, isto é, atuar no
sistema político não sendo orgânico ao sistema político, pressupõe a
organização revolucionária desenvolver a capacidade de atuar dentro e fora da
institucionalidade. Como latino-americanos, me parece, não é preciso lembrar o quanto
na história do movimento operário as nossas organizações foram perseguidas e
postas na ilegalidade nos momentos mais acirrados da luta de classe. Quebrar os
limites da legalidade ou avançar no Estado de Exceção dentro da legalidade é um
princípio básico da ação burguesa em momentos de acirramento de classe
confirmado por todas as experiências históricas até hoje conhecidas. Garantir,
portanto, essa dupla capacidade, atuação legal e ilegal, é outro elemento de
universalidade da concepção leninista de organização.
A organização revolucionária, para garantir não
ser um gestor da ordem e conseguir atuar mesmo estando marginal ou fora da
legalidade, precisa garantir sua independência de classe nos aspectos
organizativos: finanças, comunicação, estrutura etc. Ou seja, a organização
revolucionária não pode depender financeira e organizativamente do Estado e
muito menos da classe dominante. É um partido onde seu funcionamento orgânico é
garantido por sua militância através de meios que historicamente são muito variados.
O partido revolucionário pode receber financiamento do fundo partidário, por
exemplo, mas esse fundo nunca, sob hipótese alguma, pode ser seu núcleo de
estruturação. A questão, nesse aspecto, é bem clara: a independência política
exige um correlato (para ser real) organizativo. Quem paga a banda escolhe a
música – a organização que depende do Estado burguês ou de “doações” privadas
nunca poderá operar uma real política proletária.
Garantir a independência de classe em seus
aspectos materiais impõe um nível de profissionalização altíssimo da atividade
política. Não é possível, por exemplo, nas condições do Brasil, um país
continental, manter um partido de âmbito nacional funcionando com “ativistas” –
pessoas que tomam a ação política como uma dimensão secundária ou complementar
de suas vidas. O partido revolucionário, para funcionar como tal, exige
militantes profissionais e semiprofissionais. O revolucionário profissional é
uma exigência universal da prática política revolucionária. Qual será a forma
de profissionalização? Em que ramos de atuação? Qual a forma de seleção e
controle da atuação dos militantes profissionais? Essas questões, como já disse
em outro exemplo, dependem de situações históricas específicas e assumem as
mais diversas formas organizativas, contudo, a forma, não muda o conteúdo: a
profissionalização de revolucionários é uma necessidade intransponível.
Esse partido revolucionário negador da ordem com
capacidade de atuar legal e ilegalmente sempre em busca de sua independência de
classe e profissionalização da atuação política, precisa, para ser um operador
político nacional, atuar como um sujeito coletivo, um estado-maior do
proletariado. Sem negar as especificidades regionais, para o processo
revolucionário, é necessário que o partido (aqui, de novo, o plural pode ser
usado sem problemas!) consiga congregar todas as particularidades num programa
político revolucionário que vai ser a expressão do universal: desde o
trabalhador precarizado do centro de São Paulo, até o ambulante de Recife e o
trabalhador agrícola do Rio Grande do Sul, todos, sem nunca esquecer as
mediações, vão atuar e defender o mesmo programa (sem falar das categorias
sociais oprimidas, como as LGBTs). Em suma, sem unidade na ação, especialmente
nos momentos de acirramento da luta de classes, é impossível a revolução.
Historicamente, a forma de garantir a unidade na
ação, a constituição de um sujeito político coletivo e coeso, foi a forma do
centralismo-democrático. Nesse ponto, o cuidado com as caricaturas deve ser bem
maior. A nossa memória histórica esqueceu que a forma do
centralismo-democrático é infinitamente mais variada que se imagina. O
centralismo no PCUS nunca foi o mesmo que no Partido Comunista Cubano, no
Partido Comunista Chinês ou no Partido do Trabalho da Coreia. Aliás, o Partido
Comunista Italiano, o PCI, no auge do eurocomunismo e sua consequente negação
do leninismo, manteve o centralismo-democrático!
Outro ponto importante, qualquer conhecedor
mínimo do movimento comunista sabe que a concepção de centralismo-democrático
do Partido Comunista Grego (KKE), Partido Comunista Sírio e do Partido
Comunista Brasileiro não é a mesma, por exemplo. Só o reducionismo
anticomunista pode tratar o centralismo-democrático como “tudo a mesma coisa”.
O objetivo da atuação coesa e unitária na ação pode ser conseguida fora da
estrutura do centralismo-democrático a despeito da própria variedade de formas
desse último? Nunca neguei que sim! A
questão, e indo direto ao ponto, é que até hoje a única forma eficiente encontrada
para essa tarefa é o centralismo-democrático – o que não impede de daqui há
algum tempo encontrarmos outra.
Para se contrapor aos aparelhos ideológicos da
burguesia, afinal, a classe que detém o poder material controla o poder
espiritual [cultural], a organização revolucionária deve manter um robusto
aparato de agitação e propaganda do seu programa político. Esse aparato de
agitação e propaganda é o que vai viabilizar que em cada luta particular,
imediata, limitada, o ponto de vista geral, revolucionário, seja colocado,
garantindo que a prática política será pedagógica no avanço da consciência de
classe. Ou seja, o partido revolucionário é o formulador e divulgador do
projeto revolucionário e o vetor de propagação de uma nova cultura, negando os
valores e a ideologia dominante. A comunicação é um ponto nodal, crítico, no
partido revolucionário: ela precisa garantir capacidade de agitação e
propaganda para e com a classe e ao mesmo tempo garantir o funcionamento
orgânico de todas as instâncias do partido, desde as bases nos rincões mais
afastados do país até o comitê central.
Como garantir, por exemplo, uma atuação ilegal
sem uma eficiente comunicação externa e interna? E como garantir essa
comunicação sem revolucionários que se especializem nisso e capacidade
financeira própria para montar essa aparato de agitação, propaganda e
comunicação? No sistema político burguês, por mais democrático que seja, a
contestação aberta da ordem, isto é, o debate sobre o programa revolucionário,
nunca será feito! Cabe ao partido, em sua atuação concreta, criar as condições
materiais para tornar esse debate – sempre em condições históricas particulares
– um movimento de massa.
Podemos resumir tudo que falamos na seguinte
questão: o Estado burguês, a despeito de sua múltipla variabilidade
institucional, é um instrumento de conservação da ordem; a burguesia, nos
processos de luta de classe, nunca abrirá mão de quebrar a legalidade ou
potencializar a repressão dentro da legalidade quando necessário; o sistema
político e sua lógica de financiamento são estruturados de tal forma para que
os partidos organicamente integrados como defensores da ordem, sendo de
esquerda ou direita; a sociedade burguesa, em sua reprodução, conta com
complexos e ramificados aparelhos repressivos, ideológicos e de controle que
para serem enfrentados necessitam de estruturas igualmente complexas e sólidas;
os meios de comunicação e produção cultural são monopólios da classe dominante
e as classes dominadas, para fazer política, precisam buscar quebrar esse
monopólio desenvolvendo seus próprios instrumentos hegemônicos.
O parágrafo acima
resume alguns dos principais desafios que todo revolucionário tem de enfrentar
na sua realidade nacional. A concepção leninista de organização, em seus
elementos de universalidade, é uma resposta política a esses desafios. Por isso
que no título desse texto eu afirmei que é um senso comum essa ideia amplamente
difundida que a concepção leninista de organização está superada. Façam o
teste: busque aprofundar o debate com os que defendem isso apontando os
elementos acima tratados. Garanto por experiência própria que a maioria ficará
sem resposta.
Nos próximos escritos vamos desenvolver de forma
mais aprofundada apontamentos realizados de maneira telegráfica nesse escrito. Mas
antes disso, não podemos terminar sem apontar uma importante provocação: nos
últimos 40 anos a concepção leninista de organização foi expurgada da maioria
das organizações de esquerda do mundo; o senso comum do “novo”, “novidade”, “a
nova coisa” tomou a esquerda. Desconheço nesse período qualquer experiência
exitosa de revolução conduzida por essas “novas concepções” organizativas. As
ideias sobre as formas de ativismo em rede e integração horizontal de
organização tem como principal mérito vender muitos livros na Livraria
Cultura.
Excelente texto, gostaria que você comentasse um parágrafo meu, ele foi escrito baseado no seu texto, e nele, eu me mostro muito preocupado como o momento na linha do tempo que vai do nascimento do poder popular até a formação do bloco histórico e do partido revolucionário, como neste momento longo de resistência precisamos operar com as estruturas de luta dos trabalhadores disponíveis para aumentar o controle direto, o poder dos trabalhadores , o poder popular, até que o poder popular não seja mais o poder alternativo, o outro poder, mas o poder de facto.
ResponderExcluir" Analisar concretamente todas as forças locais dos trabalhadores e das elites locais capitalistas, juntamente com os seus representantes; e a partir desta análise formar uma organização local-nacional dentro do contexto latino americano, que consiga dentro desta situação concreta atuar entre a criação de poder popular mais simples até a formação do bloco histórico e do partido revolucionário, uma organização com mobilidade e robustez suficientes para contribuir para a formação e fortalecimento de ambos (bloco e partido), funcionando como verdadeiros tanques de guerra da classe trabalhadora, e esta em torno destas fortalezas móveis progredindo no terreno concreto da realidade. Uma organização intermediária, entre o nada e o partido, que prepare o caminho e contribua para a formação do bloco histórico, onde o operador político revolucionário dos explorados e oprimidos, possa então realizar mais fortemente o assalto final da tomada do poder político. Haverá, portanto, em cada comunidade, uma estrutura entre o nada e o bloco, entre o pouco e o partido, com a capacidade de aglutinar em torno de si as forças progressistas locais para pavimentar o caminho da revolução. Se o principal elemento do bloco é o partido revolucionário, o principal elemento de luta no longo processo de resistência para ascender ao bloco histórico serão os sindicatos guarda chuva, aqueles que albergam em si toda a estrutura de mobilidade e robustez de guerra da classe trabalhadora até que o bloco histórico se faça caminhar para a ruptura."
Abração